Li a Ilíada dias atrás e fiquei surpreso com
uma cena logo nas primeiras páginas. Uma cena que não lembrava – ou que talvez
nunca tenha me dado conta.
Após a conhecida discussão de Aquiles com Agamenon na
assembleia dos guerreiros, na qual Aquiles perde para o seu correligionário a escrava
Briseis, o herói se retira furioso para junto dos navios. Solitário, ele se senta
“chorando junto à praia do cinzento mar”, estende os braços e dirige “muitas
preces a sua querida mãe”.
Nunca tinha lido a Ilíada do início ao fim, mas
conhecia diversos trechos (o primeiro canto, entre eles, onde se encontra a cena acima). No entanto não lembrava do herói derramando lágrimas e chamando a
mãe:
– “Mãe, já que me tiveste, por mais breve que a minha
vida possa ser, pelo menos a honra Zeus troante deve me ter concedido. Agora,
porém, não me está honrando, de modo algum, pois o filho de Atreu [Agamenon], o
rei dos homens, ultrajou-me. Tomou minha presa de guerra [Briseis] e a conserva.”
Tétis, sua mãe (uma nereida que vive no fundo do mar),
o escuta e vem correndo sentar-se ao seu lado, dizendo:
– “Por que choras, meu filho? Que dor te atormenta o
coração? Fala, nada escondas em teu espírito, a fim de que nós possamos saber.”
Aquiles se queixa para a mãe, fala mal de Agamenon e
pede que ela o ajude a se vingar. Tétis não titubeia em atender ao filho, vai
buzuzar nos ouvidos de Zeus e o resto é bem conhecido: Zeus faz a guerra virar
a favor dos troianos, faz os aqueus sofrerem duras perdas humanas e Agamenon se
arrepender da sua loucura contra a honra de Aquiles dos pés ligeiros.
Eu não lembrava, porém, da presença fundamental da mãe na vida de Aquiles, o mais destemido e cruel
dos guerreiros. Espanto talvez seja compreensível. Afinal, no entendimento habitual que temos dos heróis, estes são solitários, movem-se
sem família, e até as mães não costumam ser presentes e muito menos decisivas. E, jamais,
os heróis suplicam qualquer coisa para as mães. Ora, pedir arrego para a
madrecita!
No final do poema, quando Aquiles resolve voltar a
lutar, novamente a mãe intervém de forma marcante. Aquiles está sem armadura e é a mãe quem providencia uma nova. A antiga fora usada por Pátroclo e, quando este foi
morto por Heitor, o grande guerreiro troiano a pegou como troféu. Tétis
consegue que o deus Hefesto produza uma nova de um dia para o outro e a traz
para o filho.
– “Recebe esta gloriosa armadura de Hefesto: a mais
bela, tal como um homem jamais trouxe sobre os ombros. (...) Convoca os
guerreiros aqueus em uma assembleia, renuncia ao teu rancor contra Agamenon,
pastor do povo, e arma-te, sem demora, para a guerra, revestindo-te de valor.”
(Livro XIX)
É uma figura
com voz e protagonismo a madrecita de Aquiles, o herói que tanto serviu de
modelo de coragem e de masculinidade na civilização greco-romano. O destemido
guerreiro, arrogante e cruel (modelo para Alexandre, o Grande, conquistador da
Pérsia), não escapou de uma mãe constante e devotada. (Não escapou ou teve o privilégio - faça sua escolha, prezado leitor.) E Homero, sempre humano, “demasiadamente humano” como apontam os
estudiosos, não esqueceu disso.
Procurei no Google alguma obra de arte representando Tétis
consolando o filho logo depois dele desentender-se com Agamenon, mas não
encontrei. As cenas de Tétis e Aquiles mais tematizadas nas artes plásticas (ou mais presentes no Google) são as do banho na infância do herói e a da entrega da armadura de
Hefestos. Escolhi essa última para ilustrar a crônica: o quadro de um pintor
neoclássico, Benjamin West (desconhecido para mim).
É uma cena dramática e solene: Aquiles chora o amigo
morto em combate (Pátroclo) e sua linda mãe (linda demais, jovem demais para
ser mãe de um guapo mancebo) lhe traz a armadura e o exorta ao combate. "Canta, ó Musa, o amor de Tétis, mãe de Aquiles", compus na hora, "o amor que tanta alegria trouxe ao mais destemido dos aqueus".
Tétis entregando a armadura a Aquiles (1805), de Benjamin West. |
A Ilíada é um poema sem fim, uma leitura que não
termina. O texto que li dessa vez foi uma tradução em prosa, feita por Fernando
C. de Araújo Gomes e publicada numa coleção da Folha de S. Paulo, “Clássicos da
Literatura Universal” (Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1998.
426 p.) Ao final do livro, há uma nota explicando que o tradutor pretendeu um
texto acessível ao leitor médio, “o leitor de certa cultura”, e para isso fugiu
do “eruditismo excessivo”. Penso que a intenção do tradutor se concretizou e o leitor
mediano que sou leu com prazer essa tradução. E de todos
os dramas da “maior história de guerra do mundo” foi a relação de um filho com sua mãe o que mais se impôs na leitura. Tétis, certamente, bem merecia um poema só seu.
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