A Sala Amarna, do Museu Egípcio (no Cairo), é de
encher os olhos. Na verdade, é de revirar os olhos. Encher os olhos e o
coração. Fiquei impactado.
A sala tem o nome da cidade criada pelo faraó Amenófis
IV, do Novo Império, que, em função de sua devoção ao deus Aton, o Disco Solar, mudou o
seu nome para Akhenaton. E também criou uma nova capital, Akhetaton, depois
conhecida como Amarna (daí o nome da sala).
Amenófis tinha um projeto religioso revolucionário: a
implantação de uma religião monoteísta, a transformação da religiosidade
politeísta egípcia e, em especial, o fim do predomínio do culto a Amon, o fim
do poder do clero de Amon (que competia com o poder dos faraós). Ao reformar a
religiosidade egípcia, o faraó também pretendia a supremacia do poder real
sobre novas bases, contendo não só os sacerdotes de Amon, mas também os
militares (outro tradicional sustentáculo do poder real) que já se estendiam na
Ásia Menor (na Palestina e Síria) e também na África (na Núbia e atual Sudão).
Além de monoteísta, Akhenaton tinha um projeto pacifista (como se o poder de um
império pudesse prescindir das armas). Seu projeto era religioso, político, e também ético e artístico. Era pretensão demais e os
sacerdotes de Amon não tiveram dificuldade em conspirar e ganhar apoio da sociedade em geral para a retomada do poder. O faraó reinou 16
anos (de 1352 a 1336 a.C.) e se supõe que tenha sido assassinado.
Quando entrei na sala Amarna, o que chamou atenção foi
a mudança no padrão artístico das peças, a transformação na representação do
faraó - "as zigomas salientes, os olhos oblíquos, a boca sensual" - e de sua rainha. Depois de andar pelo museu, ver as tantas peças de faraós
estáticos e hierárquicos, salta aos olhos a chamada “revolução naturalista” que
Akhenaton desencadeou. A sala é um pouco confusa (como é, de modo geral, o museu
inteiro), as peças estão exibidas de maneira um pouco caótica, mas nem por isso
o impacto é menor. Uma grande estatua do faraó monopoliza a atenção (primeira foto
abaixo) e logo sabemos que estamos diante dos registros de um reinado
diferenciado dentro da civilização egípcia. Um faraó revolucionário e sua
belíssima rainha, Nefertiti. A escultura da cabeça da rainha, de apenas 33
centímetros (segunda foto abaixo), me deixou maravilhado. Na sequência, uma
pedra com o relevo do faraó, a rainha e as filhas adorando o Sol (terceira
foto) e indicando o que talvez seja a síntese da reforma religiosa pretendida: a família real como agente principal da adoração de Aton e, dessa maneira, o vínculo entre a população egípcia e o mundo divino.
Uma sala do Museu do Cairo que é impossível esquecer.
Colosso de Akhenaton. |
Cabeça de Nefertiti. |
Relevo de Akhenaton, esposa e filhas adorando Aton, o disco solar. |
Ao voltar da viagem, li o romance de Naguib Mahfuz, “Akhenaton,
o rei herege”, que tinha guardado há anos. Também li uma peça teatral de Agatha
Christie, “Akhenaton”, igualmente sobre o personagem central da Sala Amarna. Não
procurei literatura especializada sobre o tema, isto é, material escrito por
historiadores, e me refestelei apenas com a produção dos ficcionistas.
Mahfuz registra diversas versões sobre o reinado do
faraó e parece sintetizar o que existe sobre o tema. No seu romance, ambientado poucos anos após a morte de Akhenaton, um rapaz sai em busca da
verdade a respeito do reinado recém encerrado e entrevista diversos personagens
que tiveram contato com o faraó, inclusive a rainha Nefertiti. Por meio desse
recurso (que não resulta num romance empolgante) o autor registra versões conflitantes a respeito do rei – inclusive a de que ele não manteve
relações sexuais com a rainha, que as suas filhas são de amantes de Nefertiti
(entre eles, o general Horemheb, grande amigo do faraó), e que ele apenas
conseguiu transar com a mãe, a rainha Tyie, tendo uma filha com ela. O personagem
investigador, no entanto, não se decide por nenhuma versão, não refuta as hipóteses conflitantes, e conclui
afirmando seu "entusiasmo pelos hinos religiosos" de Akhenaton e seu "profundo
amor pela belíssima senhora".
Na peça teatral de Agatha Christie, muito mais
empolgante para o leitor de ficção, há conspiração, traição e envenenamento, e também algum romantismo.
Além de dar concretude a propalada versão da conspiração dos sacerdotes de Amon
e do assassinato do faraó, a famosa escritora apresenta uma Nefertiti
amorosa, que não trai o marido nem o abandona quando sacerdotes e generais
solapam o seu poder. Na versão da peça, Nefertitti até se suicida quando percebe que o faraó foi envenenado, como uma versão mais antiga da conhecida Cleópatra. Literariamente,
a trama convence. Um bom final para quem se emocionou com as peças expostas na
Sala Amarna e não consegue esquecer o seu impacto.
Livros
citados:
MAHFUZ,
Naguib. Akhenaton, o rei herege. Rio
de Janeiro: Record, 2005. 222 p. (O autor recebeu o Prêmio Nobel da Literatura
em 1988.)
CHRISTIE, Agatha. Akhenaton
– uma peça em três atos. Porto Alegre: L&PM, 2018. 168 p. (Segundo
informações da contracapa, a autora se baseou nas lendas que lhe foram contadas
pelo arqueólogo Howard Carter.)
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