O bolsonarismo é uma força avassaladora. Assisti
amigos serem engolfados por esse movimento político e até hoje me horrorizo com
o fenômeno. De todas as figuras que acompanhei nesse processo, a que mais me espantou
foi a de um professor que conheci nos anos 1980, quando ambos fomos nomeados para o
Magistério Estadual, numa escola da zona norte de Porto Alegre. Colegas e
depois amigos, lecionávamos numa escola de madeira, no curso supletivo noturno,
para alunos adultos, muitos deles trabalhadores em lojas, bares e hotéis, pequenas
oficinas e casas de família, com baixo salário e condições de vida precária. Um
alunado que indicava para nós (ambos com formação marxista – a dele, muito
superior à minha), a necessidade urgente de “transformações socioeconômicas
profundas no País”.
Ambos éramos simpatizantes do PT e gastávamos horas
discutindo as diferentes tendências do partido e a melhor orientação para a
formação “de uma classe trabalhadora consciente e unificada”. Mas o tempo
passou e a última vez que o vi foi nas proximidades do acampamento bolsonarista
em frente ao Comando Militar, em Porto Alegre (em novembro de 2022), e não tive
coragem de perguntar se ele estava na luta por intervenção militar e suspensão
do resultado das urnas, ou, como eu, apenas bisbilhotando. Quando nos
conhecemos, a conquista da democracia liberal era questão de princípio, a
emenda Dante de Oliveira (por eleições diretas para presidente da República)
fora recém derrotada, mas não esfriara nas nossas cabeças.
Tudo bem que, com o passar dos anos, ele abandonasse
o imperativo das mudanças socioeconômicas profundas “do ponto de vista das
classes populares” e adotasse princípios liberais na economia e os reajustes no
sistema capitalista que constituem a pauta neoliberal. Nós dois ascendemos
socialmente (de professores de escola estadual migramos para a universidade
federal) e um certo aburguesamento de atitudes e ideias é inevitável. Mas
detonar o jogo democrático liberal, não. Alinhar-se com os setores reacionários
das Forças Armadas, nostálgicos do AI-5 (instrumento jurídico da consolidação da
ditadura militar no Brasil, em 1968) e da tortura como método de enfrentamento
político-militar, jamais.[1]
Marchar com o neofascismo, nunca.
Mas meu amigo ultrapassou todos esses limites.
Começou aderindo ao ideário do PSDB (em especial a pauta econômica, a do “enxugamento
do Estado”, as privatizações), depois à Lava-Jato (não apenas o combate a
corrupção, mas o desmonte do projeto neodesenvolvimentista que colocava a
Petrobrás como um dos eixos), o impeachment da Dilma, o Teto de Gastos e, cúmulo
dos horrores, a adesão a candidatura de Bolsonaro à presidência da República
(com todos os indicativos antidemocráticos que ele sempre deu, nunca escondeu,
ao longo de sua carreira de deputado).
Todo mundo tem direito de mudar, dirá o leitor mais
tolerante. E eu respondo: sim, com certeza. Mas tem limites. Migrar da esquerda
marxista para a extrema-direita bolsonarista é demais. Pra mim, incompreensível.
Manifestação bolsonarista em Santa Maria, abril de 2021, em protesto às medidas restritivas para enfrentar a pandemia da Covid. |
No início desse ano, vi meu ex-amigo endossando as teses
da “ditadura do Judiciário”, das arbitrariedades feitas contra os manifestantes
do 8 de janeiro de 2023, da inocência dessa massa que agiu como cabeça de ponte
de um movimento golpista fracassado e afirma ter ido a Brasília “para orar pelo
país”.
[1] O voto
de Bolsonaro no impeachment da Dilma, dedicando-o ao coronel Ustra, é
emblemático da sua adesão à herança mais abjeta do Regime Militar, isto é, a
tortura como instrumento de luta.
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