quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Bolsonarismo na veia

 

O bolsonarismo é uma força avassaladora. Assisti amigos serem engolfados por esse movimento político e até hoje me horrorizo com o fenômeno. De todas as figuras que acompanhei nesse processo, a que mais me espantou foi a de um professor que conheci nos anos 1980, quando ambos fomos nomeados para o Magistério Estadual, numa escola da zona norte de Porto Alegre. Colegas e depois amigos, lecionávamos numa escola de madeira, no curso supletivo noturno, para alunos adultos, muitos deles trabalhadores em lojas, bares e hotéis, pequenas oficinas e casas de família, com baixo salário e condições de vida precária. Um alunado que indicava para nós (ambos com formação marxista – a dele, muito superior à minha), a necessidade urgente de “transformações socioeconômicas profundas no País”.

Ambos éramos simpatizantes do PT e gastávamos horas discutindo as diferentes tendências do partido e a melhor orientação para a formação “de uma classe trabalhadora consciente e unificada”. Mas o tempo passou e a última vez que o vi foi nas proximidades do acampamento bolsonarista em frente ao Comando Militar, em Porto Alegre (em novembro de 2022), e não tive coragem de perguntar se ele estava na luta por intervenção militar e suspensão do resultado das urnas, ou, como eu, apenas bisbilhotando. Quando nos conhecemos, a conquista da democracia liberal era questão de princípio, a emenda Dante de Oliveira (por eleições diretas para presidente da República) fora recém derrotada, mas não esfriara nas nossas cabeças.

Tudo bem que, com o passar dos anos, ele abandonasse o imperativo das mudanças socioeconômicas profundas “do ponto de vista das classes populares” e adotasse princípios liberais na economia e os reajustes no sistema capitalista que constituem a pauta neoliberal. Nós dois ascendemos socialmente (de professores de escola estadual migramos para a universidade federal) e um certo aburguesamento de atitudes e ideias é inevitável. Mas detonar o jogo democrático liberal, não. Alinhar-se com os setores reacionários das Forças Armadas, nostálgicos do AI-5 (instrumento jurídico da consolidação da ditadura militar no Brasil, em 1968) e da tortura como método de enfrentamento político-militar, jamais.[1] Marchar com o neofascismo, nunca.

Mas meu amigo ultrapassou todos esses limites. Começou aderindo ao ideário do PSDB (em especial a pauta econômica, a do “enxugamento do Estado”, as privatizações), depois à Lava-Jato (não apenas o combate a corrupção, mas o desmonte do projeto neodesenvolvimentista que colocava a Petrobrás como um dos eixos), o impeachment da Dilma, o Teto de Gastos e, cúmulo dos horrores, a adesão a candidatura de Bolsonaro à presidência da República (com todos os indicativos antidemocráticos que ele sempre deu, nunca escondeu, ao longo de sua carreira de deputado).

Todo mundo tem direito de mudar, dirá o leitor mais tolerante. E eu respondo: sim, com certeza. Mas tem limites. Migrar da esquerda marxista para a extrema-direita bolsonarista é demais. Pra mim, incompreensível.

Manifestação bolsonarista em Santa Maria, abril de 2021, em protesto
às medidas restritivas para enfrentar a pandemia da Covid.

No início desse ano, vi meu  ex-amigo endossando as teses da “ditadura do Judiciário”, das arbitrariedades feitas contra os manifestantes do 8 de janeiro de 2023, da inocência dessa massa que agiu como cabeça de ponte de um movimento golpista fracassado e afirma ter ido a Brasília “para orar pelo país”.

          Realmente um fenômeno que está fora do meu entendimento. Deve existir alguma droga que os bolsonaristas injetam no corpo de seus militantes e simpatizantes, capaz de alterar seus corações & mentes e os fazerem verbalizar e ter comportamentos tão descabidos, muitas vezes sem sustentação na realidade, apenas na paixão ideológica.


[1] O voto de Bolsonaro no impeachment da Dilma, dedicando-o ao coronel Ustra, é emblemático da sua adesão à herança mais abjeta do Regime Militar, isto é, a tortura como instrumento de luta. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário