quarta-feira, 31 de julho de 2024

Paris, 2019

 

Em outubro de 2019 estive em Paris. Passara vinte dias em Roma (fazendo um curso de italiano) e fui me encontrar com um grupo de professores e alunos da Universidade Franciscana (Santa Maria) que realizavam uma excursão cultural pela cidade. Foram dias muito intensos, que me vieram a lembrança ao ver na TV algumas cenas das Olimpíadas, tendo ao fundo a Torre Eiffel e o Grand Palais... Dias em que visitei o Museu Yves Saint Laurent, a Fundação Louis Vuitton, as Galerias Lafayete, o Louvre, o Museu d’Orsay, Versailles, a Île de la Cité e por aí vai.

Ao final de uma semana o grupo excursionista voltou ao Brasil e fiquei na cidade mais uma noite (meu voo estava marcado para a manhã seguinte, para Lisboa, onde ficaria alguns dias). Saí a pernear no meio da tarde, voltei quase meia-noite, um passeio solitário que gosto de lembrar. Peguei o metrô até a Ópera Garnier e depois segui a pé, a esmo, na direção do Rio Sena, da Torre Eiffel... lembrando de filmes e livros que se passavam nesses locais, concordando com as pessoas que se referem a Paris como uma cidade estonteante, infinita ou algo assim.

Imediações da Ópera Garnier.

Assisti a luz do entardecer tomar conta das imediações da Ópera Garnier e quando alcancei as margens do Sena, já era noite completa. Fiquei na beira do rio, encostado numa murada, olhando o movimento das embarcações (poucas) e dos automóveis (centenas) que não deixavam de circular pelas avenidas próximas. Ao longe a Torre Eiffel iluminada... e a sensação de já ter assistido este filme.

Quando cheguei nas imediações da famosa Torre, me deparei com um enorme gramado com diversas pessoas sentadas no chão com copos, garrafas e pães. Grupos variados curtindo o parque, a famosa Torre... sem gastar para subir as suas escadas ou tomar o elevador. Nos preços atuais (de julho de 2024), 14 euros para ter acesso à escada, 22 para pegar o elevador até o segundo andar, 27 para alcançar o cume (preço para um adulto).

Parei, me sentei num banco (dividindo o mesmo com um casal que me pareceu árabe, apesar de falarem francês) e fiquei olhando a multidão. Me achei estranho debaixo da Torre Eiffel, com uma sensação algo insólita e maravilhosa ao mesmo tempo. Afinal tenho tantas lembranças de quadros, livros, filmes e canções falando dessa cidade, que não deixava de ser desconcertante estar ali, em carne e osso... Um território do imaginário subitamente transformado em real.

Depois segui na direção da Arco do Triunfo, da Avenida Champs Élysées, e ninguém me pergunte como descobri o caminho. Fui andando, desbravando, inclusive por ruas desertas (mijei ao lado de um contêiner de lixo), encontrando um homem com duas crianças (filhos?), sentados na calçada, encostados numa parede, com um bom cobertor xadrez protegendo-os do frio da noite. Uma cena desconcertante, contraditória com meu imaginário a respeito de Paris, que não esqueço até hoje. O homem com uma expressão agoniada, enquanto as crianças me pareciam tranquilas.

Andei pela Champs Élysées até a Praça da Concórdia e fotografei um bar com mesas na calçada, no qual tinha parado numa noite, para beber uma taça de vinho, acompanhado de torradas com patê. (Agora me pergunto se era "le pâté foie gras", não lembro, apenas que era muito bom.) Uma parada inesquecível do meu grupo de excursionistas, justa parada para uma bebida, depois de um dia de intensa caminhada.

Av. Champs Élysées.

Um bar que fica quase em frente ao endereço de um dos grandes personagens da literatura universal, o Conde de Monte Cristo, criado por Alexandre Dumas. Sim, um dos endereços do conde (lá na primeira metade do século XIX). Quando ele chega a Paris para a sua almejada vingança, ele compra a casa nº 30, na Champs Élysées (assim como um palácio nas imediações da cidade).

Terminei desse jeito a minha caminhada solitária por Paris, misturando realidade com ficção, e peguei um táxi na Praça da Concórdia. Não aguentava mais o cansaço.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

O Massacre dos Inocentes

 

Quando criança, me assustava com os rompantes de fúria do meu pai. Ele perdia as estribeiras conosco, os seus três filhos, e às vezes nos sapecava uns safanões, algumas palmadas. A mãe era contra este tipo de pedagogia e protestava. Essas atitudes do pai geravam desavenças tremendas entre eles, minha mãe chorava e eu me assustava ainda mais. Na verdade, me angustiava. Senti-la atormentada pelo meu pai abria um rombo dentro de mim. Uma ferida, me disse o psiquiatra. Compreender esta situação, reparar essa ferida, foi tarefa de uma vida.

Meu pai não era um homem violento. Mas era furioso e fazia um esforço enorme para se controlar. Um homem que tinha também uma faceta amorosa e deixou isto claro na relação com a mulher e os filhos. "Mas às vezes perco as estribeiras”, gostava de dizer. E reconhecia que a esposa o ajudava a dominar os seus rompantes, conforme falou.

Minha mãe, por sua vez, não era uma mulher dominada pelo marido, muito menos atormentada por ele. Uma mulher de perfil tradicional, sim, que compreendia o marido como “cabeça da família” (ela conhecia as epístolas de São Paulo), mas se garantia. Tinha a sua vida, suas ideias, profissão (era professora primária) e muita determinação, coisas que o pai admirava. “Ela daria uma ótima administradora de empresa”, ele dizia, ao comentar o modo como ela organizava a vida doméstica.

Compreender e aceitar meus pais creio que foi uma das tarefas da minha vida. Assim como reparar os danos que a relação com eles desencadeou em mim.

Pois madrugada dessas sonhei com as brigas ocorridas na infância e estranhei o modo como elas foram lembradas... Acordei, fui até a cozinha fazer um chá e me dei conta de que o sonho era sem aflição, sem angústia, e, sim, semelhante ao que vivemos diante de um quadro, assistindo a um filme, lendo um livro... Semelhante ao que eu vivi na Galeria das Tapeçarias, no Museu do Vaticano... Naquela ocasião, eu me deparei com uma série de tapetes belíssimos, um deles denominado “O Massacre dos Inocentes” (aquele determinado por Herodes, quando soube que o Messias havia nascido) que me deixou encantado. Um tapete feito em Bruxelas, no século XVI, com um equilíbrio dramático magnífico.[1]

Detalhe de "O Massacre dos Inocentes".
(Museu do Vaticano)

Sim, eu estava (estou ainda) ressignificando um episódio infantil que me marcou, pensei enquanto tomava o chá e escrevia a respeito. Não estava renegando o sofrimento que a cena de infância comporta, mas encarando-o de outra maneira. Compreendendo melhor os meus pais (como eles eram intensos nos seus sentimentos!) e inclusive o pirralho fantasioso que eu era. Compreendendo, aceitando, reparando, e me sentindo mais próximo deles.

Quando terminei o chá, lembrei de uma professora de artes no Julinho (Colégio Júlio de Castilhos) que um dia me falou para nunca abandonar o gosto pelas artes. “A arte serve para muitas coisas, inclusive para a nossa vida pessoal”, ela afirmou, numa conversa de final de aula.

Tinha razão a professora, a emoção que “O Massacre dos Inocentes” me proporcionou... serviu de estribo para eu melhor reorganizar as lembranças da infância. Me deu “estribeiras”, penso agora, para realizar esta tarefa e cicatrizar uma ferida, complementando um longo esforço de psicoterapia.

Que bobagem dizer que a arte é inútil!



[1] Segundo a legenda das obras: “Serie della Scuola Nuova con episodi della Vita di Cristo da cartone della scuola di Raffaello. Bruxelas, 1524-1531 – Bottega di Pieter Van Aelst.”

sábado, 20 de julho de 2024

Conversa com motorista de aplicativo

 

Estava em Porto Alegre e acessei o aplicativo para chamar um carro para me levar ao shopping. Queria fazer uma refeição rápida e assistir a um filme. Entrei no veículo, o motorista estava com o verbo e começou dizendo que a vida não está fácil. Falou da inflação descontrolada, do preço dos alimentos e disse que o governo não está facilitando, pois o Lula fala o que não deve, mete os pés pelas mãos, é um desastre. Eu comentei que a inflação está abaixo das previsões e o Lula apenas rebate o alarmismo dos agentes do mercado. Enquanto isso o ministro da Fazenda, em total sintonia como Presidente, negocia com os representantes da classe patronal e busca atender as suas demandas.

– É jogo duro – conclui. – Difícil conciliar essas demandas do mercado com as necessidades dos trabalhadores.

Desconfiei que o homem era eleitor do Bolsonaro e utilizei palavras fora do usual para sinalizar que ele não estava conversando com um tonto. Imaginei que ele estava na faixa dos 70 anos (75 anos talvez) e perguntei se era motorista desde cedo.

– Não, tive comércio alguns anos. Uma loja de roupas, perdi tudo e fui para o táxi. Agora estou no aplicativo.

– Sempre aqui em Porto Alegre?

O homem respondeu que sempre trabalhou na região metropolitana, desfiou a sua vida e descobri que tínhamos a mesma idade: 68 anos. Ele era natural de Cachoeira, da zona rural, mas logo a família se mudou para a cidade e, aos trancos e barrancos, ele foi em frente. “Sem grandes confortos”, acentuou. Cursou um colégio comercial e acrescentou, com orgulho, que “naquele tempo os colégios formavam gente para o trabalho e não como hoje que deixam a gurizada sem saber fazer coisa alguma”. No final dos anos 70 estava em Alvorada e foi aí que abriu a sua loja.

Lembrei (mas não falei) que nesta mesma época (1978) comecei a lecionar num grupo escolar (Júlio César Ribeiro de Souza) logo na entrada de Alvorada. Uma escolinha de madeira que, mais tarde, foi reconstruída com material, prédios de dois pisos, uma modernização só (ao menos visto de longe).

O homem falou a respeito das dificuldades em manter um pequeno comércio numa cidade como Alvorada, observei o seu corpo castigado (se teve empregados, devia pegar parelho com eles, imaginei) e não disse a minha idade. Fiquei constrangido.

É isto: às vezes me constranjo com a minha origem na classe média (filho de pai bancário e mãe professora primária), que não viveu as agruras do campo, sempre morou no espaço urbano e teve acesso a comodidades e confortos. E, apesar de ter sido professor da rede estadual por mais de uma década, não vivi a precariedade da maioria dos brasileiros. Um privilegiado, de certa forma.

O homem me pareceu um trabalhador castigado pela vida e voltou à carga em relação ao governo petista.

– Não é desse jeito que se governa um país – ele falou.

Um bolsonarista, concluí, e me calei, sem ânimo de continuar a conversa. Fiquei olhando a cidade, a parte bonita de Porto Alegre (estava indo na direção do Shopping Bourbon Country), e lembrei que esta é uma cidade que passou por um desastre natural, em grande parte acentuado pelo negacionismo (alimentado pelo bolsonarismo) do grupo dirigente tanto no governo estadual quanto no municipal. Um negacionismo que ocasionou o relaxamento dos cuidados ambientais e do sistema de proteção de Porto Alegre em relação às cheias do Guaíba. Uma cidade que ainda tem marcas da enchente em algumas paredes, mas não na região do shopping em que eu desci para ir jantar e assistir a um filme.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Conversa entre homens

 

É uma conversa entre homens numa casa comercial de vinhos. Uma conversa sobre a imigração italiana, vinhos e mulheres. Imigração na Serra Gaúcha, vinhos e mulheres da mesma região. Três homens originários da imigração italiana, descendentes dessa gente que veio para o Brasil no final do século XIX, graças às políticas do Império que visavam povoar a encosta da serra. Três homens que vou chamar de Pedro (50 anos), Joel (68) e André (70), todos eles com infância na zona colonial. Pedro, um professor universitário; Joel, comerciante, e André, funcionário público aposentado.

– Nossos antepassados vieram ocupar uma terra que não tinha serventia para a pecuária – diz André, o mais velho entre os três. – Sofreram muito. Era tudo mato e sem ninguém habitando.

– Havia índios – corrige Pedro, o professor – que os bugreiros trataram de liquidar ou empurrar para longe. Peleia braba que ninguém conta.

Os outros dois se olham, não dizem nada. Não sabem coisa alguma sobre os índios. Os bisavôs tiveram acesso à terra (lotes que pagaram a longo prazo) e nunca falaram a respeito dos primitivos habitantes da região. Ou, se falaram, o assunto se perdeu. Ficaram apenas as histórias a respeito da trabalheira que foi desmatar os lotes e colocar aquela terra a produzir.

– Na virada do século XIX para o XX, eles começaram a produzir vinho – afirma Pedro. – Um vinho artesanal, para consumo local. Depois quiseram comercializar para fora da zona colonial e não deu certo. O produto não suportava o transporte, perdia qualidade, azedava mesmo. Foi preciso a intervenção de agências estatais, voltadas à melhoria da agricultura, para a coisa mudar.

André, que é da opinião de que o Estado só atrapalha, torce o nariz, diz que não é bem assim:

– O empreendedorismo dos imigrantes sempre foi muito forte, Pedro.

– Não nego. Mas sem o empurrão do Estado a coisa não andaria pra frente. Dizer isso não é desvalorizar nossos antepassados.

– Pois é, o vinho era ruinzinho – reconhece Joel, com sua experiência comercial – e bebemos muito esse vinho ruim. Assim como tivemos mulheres que... também careciam de mais qualidade – ele arremata, rindo.

– Mas as coisas mudaram – opina André, aposentado e divorciado. – As mulheres estão diferentes. Eu ando saindo com uma guria nova e estou percebendo isso. Ela tem quarenta e um anos, e muito topete. É independente e cheia de ideias. Tem opinião sobre tudo, infelizmente de esquerda. Mas é mulher de fino trato.

– Originária da Colônia? - pergunta Pedro.

– Sim, bisneta de imigrantes. Mas nasceu e cresceu na cidade, é professora e nunca deu comida pra porcos.

Os três riem, um lembra as madrugadas em que saia para tirar leite das vacas, o outro das bolhas nas mãos devido ao uso da enxada e o terceiro dos porcos mesmos, do serviço para alimentá-los. 

– Mas ela tem o mesmo pedigree que nós – adianta André, orgulhoso de estar andando com uma mulher trinta anos mais moça. - O mesmo pedigree, mas em carne nova. – E acrescenta com certo pesar: – Só que na hora do vamos ver... é muito arisca, bem do jeito como se comporta o mulherio da Colônia. Ela não se solta, sei lá. Lembra a minha ex-mulher nesse quesito. Com a diferença de que é mais ajeitada, tem mais trato, é cheia de opiniões e, fundamental, a bunda e os peitos tão durinhos, o que é muito estimulante.

Os outros riem e um deles diz o inevitável nestas circunstâncias:

– Tá podendo, hein?

André retoma a sua ideia sobre o comportamento das mulheres da Colônia e comenta:

– Acho que este é o perfil do sexo feminino na nossa região, especialmente entre aquelas da nossa faixa etária, as que nasceram nas décadas de 50 e 60. Um produto muito judiado, que merecia ter tido melhor trato. As avós faziam sexo por obrigação, passavam isso para as filhas, para as netas. Todas recatadas, todas fazendo cu doce na cama.

– É uma tese – diz Pedro, o professor, fazendo de conta que está batendo palmas. – Mas o mundo gira, os costumes mudam... E as mulheres estão mudando neste “quesito”, para usar a tua expressão. Vocês lembram o que era uma mulher separada décadas atrás? Se ela mostrasse que gostava da coisa, se saísse trepando, era um escândalo. Hoje, não.

– O mundo era muito injusto com as mulheres. E nós, homens, não as tratamos bem. Temos de reconhecer isto – acrescenta Joel. – Este é o meu entendimento. As coisas começaram a mudar, a partir dos anos 90, penso eu, e desde então estamos aprendendo.

– Aprendendo com as mulheres, tu queres dizer? – pergunta André, admirado.

– Sim, com as mulheres – responde Joel. – Às vezes tenho a impressão de que elas saíram da toca e só então passamos a ver como elas são.

– Será que ainda temos tempo para isso? – pergunta André, o mais velho. – Isto é, tempo para ver, aprender e experimentar? A medicina tem nos ajudado a manter o vigor... mas não sei quantos anos ainda tenho pela frente. Às vezes eu olho aquela bichinha na minha cama e tenho vontade de começar tudo de novo.

– Casar? – pergunta Pedro, espantado.

– Sim. Se ela não fosse tão arisca na cama, eu era capaz dessa loucura.

– É vinho de boa pipa, então? Amadeirado e com notas de pera da Pérsia, confere? – debocha Joel. – Juro que não acredito que tu farias uma coisa dessas.

– Não, não vou fazer – adianta André. – É muito arriscado na minha idade. No final do ano emplaco 71 e não dá pra me aventurar. Só estou gostando da experiência, da carne nova, e até do jeito opinativa dela, toda esquerdinha, uma comunista. No resto, é parecida com minha ex-mulher, como já disse.

Joel pega uma garrafa de merlot e acrescenta:

– Vai passar, então. É coisa passageira.

Joel e Pedro dão tapas nas costas do amigo.

– Aproveita enquanto dá – diz um.

– Vai com tudo – fala o outro.

Depois os dois afirmam que as loucuras passam e voltam ao tema dos vinhos. Escolhem garrafas nas prateleiras, examinam os rótulos.

– Felizmente os vinhos da Serra melhoraram – diz um.

– Mais os brancos do que os tintos. Especialmente os espumantes – acrescenta outro.

– E isso, de forma moderada, nós podemos encarar sem medo – sintetiza Pedro.

– Ainda temos tempo de vida para tanto – acrescenta Joel, assinalando os seus 68 anos. – Mas tu, Pedro, guri de 50 anos, ainda nem sabes o que é velhice. Deixa chegar os 70, como nosso amigo André, pra ver como é que é. Eu ainda não sei o que é velhice - acrescenta, debochando de si mesmo.

Os três riem. Os três enchem uma caixa de vinhos cada um, se despedem e deixam a casa de bebidas.