O rapaz era zen budista e estávamos conversando num café,
numa sessão de lançamento de livro, aqui em Santa Maria. Falávamos sobre religiões,
a respeito do filme do Scorsese, “Silêncio”, que trata da introdução do Cristianismo no Japão, por jesuítas portugueses. De repente, ele diz que os
cristãos carregam no peito um símbolo de tortura e não se dão conta disso.
Sorrio (acho que sorrio) e penso (mas não chego a falar) que não é bem
assim.
Penso que talvez a maioria dos cristãos não tenha clareza quanto a cruz ser um instrumento de tortura do tempo do Império Romano. Mas
que sabem, sim, que carregam no peito a sombra de um martírio, os ecos de um sacrifício.
Afinal, essa referência ao martírio, ao sacrifício, isso é uma obrigação do
cristão.
No entanto, não disse nada disso. Ou não falei com
essa ênfase. Era conversa de café. O rapaz só queria dizer que o cristianismo
tem esse aspecto mórbido, de apego a um símbolo de sofrimento e por isso ele era
zen budista. Eu não quis aprofundar o assunto e falei, vagamente, que o martírio é central
na história da Cristandade. Taí o filme do Scorsese, o drama de seus
personagens missionários, que não me deixa mentir, e trocamos de assunto.
Mas saí do café pensando no tema. Lembrando. Estive na
igreja de Santa Inês (Sant’Agnese in Agone), em Roma, no mês de outubro, e fui
tocado pela história de martírio da santa.
Estava sentado num banco da igreja, na nave central, e
sorvia a magnífica luz do ambiente. A igreja tem forma circular, com uma cúpula
enorme abrigando a nave central, e aberturas muito grandes, no alto, que
proporcionam uma luz abundante. Era o final de um dia de outono e a luz era
suave, quase divina. Eu tinha um folheto da igreja nas mãos (em espanhol) e seguia
com os olhos as esculturas, os relevos e as pinturas do entorno. Estava embevecido.
De repente, fui capturado pela escultura de Santa Inês
entre as chamas. Uma escultura do século XVII, barroca, num altar lateral. A jovem
Inês (13 anos, segundo a tradição) era uma aristocrata do tempo do Império
Romano e foi jogada numa grande fogueira, condenada por ser cristã. A escultura
representa justamente esse momento. A santa com uma expressão serena, sublime,
num momento de extrema dor, vivendo a sua cruz. O fogo não foi capaz de matá-la e um soldado a
golpeou no pescoço com uma espada. O ano era o de 304, segundo a tradição.
"Santa Inês em chamas", de Ercole Ferrata. |
Naquela hora, no centro da igreja de Santa Inês, fui
banhado pela agonia da jovem romana. Pelo seu martírio. Ela se negou à vida
profana, a um casamento com um jovem aristocrata e disse ao rapaz que amava
alguém “muito mais nobre e de melhor linhagem” (Cristo).
A jovem Inês morreu por conta disso. Recusou um
pretendente nobre e foi posta à prova. Obrigada a prestar homenagem aos deuses
romanos, afirmou a sua fé cristã e as autoridades a condenaram. A igreja foi
construída no local do martírio.
Saí desse templo católico cansado e fiquei por um
tempo sentado na Piazza Navona (em frente da igreja). Era entardecer e depois
fui caminhar pela cidade até noite adentro. E beber vinho também. Certo de que
tinha vivido uma das experiências que Roma sabe proporcionar: a de nos colocar
no centro do mundo. Ou, no caso, no centro da Cristandade.
E talvez fosse isso que eu gostaria de dizer ao meu
interlocutor zen budista: o fascínio pelo martírio está no eixo do Cristianismo
tradicional. Por isso a Cruz, a terrível Cruz, símbolo da tortura que Cristo
sofreu e que os santos procuraram simular. E as igrejas católicas romanas, as barrocas
especialmente, são pródigas em abordar e exaltar esse assunto. E abordar com um
requinte artístico e uma sensualidade que acredito não poder vivenciar em nenhum
outro lugar.
Mas isso não dava para falar num café. Talvez apenas
numa crônica. Uma estranha crônica de viagem. Dessas em que o viajante relembra as suas visitas às igrejas e procura reviver as emoções provocadas pela grandeza desses templos.
Os templos romanos, no caso. Especialmente os barrocos, plenos de representações
artísticas do sofrimento sublime vivido pelos santos – Santa Inês, Santa
Teresa de Ávila – centrais na história da Cristandade, centrais na nossa tradição
ocidental.
Obs.:
além do folheto da igreja, conferi informações sobre Santa Inês no livro clássico
da hagiografia, escrito no século XIII, por Jacopo de Varazze: Legenda áurea:
vida dos santos (Companhia das Letras, 2003, 1.040 p.).
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