segunda-feira, 18 de novembro de 2019

A vitrina da França de Luís XIV


É com a expressão acima que o historiador Jacques Wilhelm apresenta o famoso palácio de Versalhes no seu livro “Paris no tempo do Rei Sol”. Nesse palácio, Luís XIV (que reinou entre os anos 1643 e 1715) concentrou o melhor das artes do seu tempo – em especial, o melhor do espetáculo, do cerimonial e da pompa.

Em torno de Versalhes e também da sua figura, Luís XIV fez girar o mundo francês. O Rei pretendia submeter a nobreza ao seu poder e, para isso, passou a abriga-la ao seu redor, primeiramente no Louvre, em Paris, e, quando isso não foi mais possível, num novo palácio, nos arredores da capital.

Deu certo. A nobreza passou a gravitar em torno do Rei e o mundo do espetáculo, das artes e do cerimonial foram instrumentos importantes para dominar esse setor social que representava o maior obstáculo para a consolidação do poder da monarquia. Como o Rei escreveu mais tarde (em "Instruções ao Delfim"), o espetáculo é o melhor meio de prender o espírito e o coração das pessoas, melhor até que recompensas e favores.

Paralelo a essa política do espetáculo, o Rei expandiu a economia (por meio de forte dirigismo estatal), consolidou um poderoso exército profissional, promoveu inúmeras guerras e colocou a França como potência hegemônica na Europa. 

Escrevo as linhas acima como preâmbulo para falar do passeio que fiz recentemente a esse palácio. Fiquei mais de duas horas na fila, às vezes debaixo de uma chuva fina, e creio que foi essa memória glamurosa da França – a da centralidade da arte e do refinamento – que me reteve ali. Quando, ao final, entrei no palácio, devo confessar que fiquei impactado negativamente e não sei precisar o que foi. Talvez a precariedade de algumas salas, a ausência de móveis... Demorei a lembrar que por ali passara o vendaval da Revolução de 1789, os saques, a transferência de importantes obras de artes (como a "Monalisa") e até o leilão de objetos variados para financiar as tropas revolucionárias.

A Revolução Francesa é o nosso paradigma de ruptura violenta da ordem sociopolítica e ali o Antigo Regime foi destruído a marteladas e golpes de guilhotina. Em Portugal a mesma mudança se deu de forma menos violenta e isso se vê no estado do Palácio de Queluz (construído a partir do modelo francês), muito melhor conservado.

Por momentos, então, senti saudade da minha visita a Queluz – menos grandioso, quase modesto se comparado a Versalhes, mas com muitos móveis e objetos que remontam ao período em que foi construído. Com uma cara muito mais simpática, arrisco dizer.

Engraçado o que um turista sente visitando os espaços privilegiados da História. Em Versalhes, quis encontrar o fausto do Antigo Regime e senti, em primeiro lugar, os ecos da Revolução que desmantelou essa estrutura de dominação construída pelo Rei Sol. Custei para perceber os vestígios da antiga pompa imperial – a vitrina da França tão meticulosamente construída por Luís XIV, como citei no início da crônica.

Mas percebi, claro, a grandiosidade da obra – curiosamente, não na famosa Sala dos Espelhos, mas na chamada Sala de Hércules. Entrei e a pintura do teto ("Apoteose de Hércules") puxou meus olhos: o famoso herói grego numa carruagem, no espaço etéreo, com a famosa clava na mão. Virei para uma das paredes e novamente um enorme quadro capturou minha atenção: um grandioso Veronese representando uma cena bíblica: “A ceia na casa de Simão” – Cristo sentado diante de uma mesa, uma perna estirada para o lado e uma mulher ajoelhada junto a ele, lavando o seu pé e secando-o com seus cabelos.

Fiquei encantado. A recriação de cenas das mitologias greco-romana e cristã com muita pompa e circunstância me pegaram. Tudo grandioso e teatral, como mandava o figurino. Espetáculo para prender o espírito e o coração da elite francesa (nobreza, alto clero, alta burguesia) e até de latino-americanos que se aventuram no espaço europeu. 

Sala de Hércules, com a pintura no teto, de Lemoyne, que dá nome ao local.


Quadro de Veronese: "A ceia na casa de Simão".

Detalhe do quadro de Veronese: uma mulher lava e seca os pés de Cristo.


Só a visita dessa sala valeu o passeio. Da minha perspectiva, estava comprovada intenção do Rei: um palácio para embasbacar, seduzir, ganhar corações & mentes. Não sem razão a multidão plebeia fica horas na fila para visitar o palácio, mesmo debaixo de chuva.




Observação: O quadro de Veronese foi presente da República de Veneza a Luís XIV, mas só foi colocado nessa sala pelo seu sucessor, Luís XV, quando foi concluída a pintura do teto (1736), feita por François Lemoyne. Como se vê, um espaço finalizado no reinado do sucessor do Rei Sol. Mesmo assim não retiro o que escrevi: foi nessa sala, diante dessas obras, que vivenciei a grandeza da “vitrina da França de Luís XIV”. Nossas emoções (ou as emoções de um reles turista) nem sempre batem com o rigor dos registros da História.

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