terça-feira, 12 de novembro de 2024

Que tempos aqueles!

 

Alguns historiadores da sexualidade afirmam que a sociedade burguesa criou um silêncio em torno do que se passava dentro do quarto do casal. Um silêncio que perdurou até a década de 1960, quando se deu (ou iniciou) a tal “revolução sexual”, possibilitada pela difusão da pílula anticoncepcional.

É um exagero colocar a pílula como fator determinante dessa transformação comportamental a que chamamos de “revolução sexual”, afinal, o fator tecnológico (como a criação de uma medicação) foi apenas mais um na série de elementos que desencadearam as mudanças socioculturais dos anos 60. Mesmo assim, vá lá, a pílula teve um impacto tremendo.

Nos anos 70, as moças iam à farmácia para adquirir a primeira cartela de pílulas e isso consistia em uma espécie de ritual de iniciação, um movimento para romper o silêncio criado em torno da sexualidade. Encarar a “questão da concepção”, desvincular o ato sexual da reprodução e se preparar para viver a sexualidade, a delícia de “fazer amor”.

As mães não podiam saber e os pais, muito menos. Geralmente era uma tia ou amiga experiente quem orientava a moçoila nessa iniciação e o namoradinho, aquele que seria o elemento “deflorador” (ainda se usava esse termo), pouco sabia da novela toda.

Li o pequeno livro de Mary Del Priore, “Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história brasileira” (comentado na crônica anterior), e ainda estou tentando entender as mudanças que ocorreram... Entre os sinais dessas transformações, a aquisição da pílula.

Uma antiga namorada me relatou como foi a sua ida até a farmácia para adquirir a primeira cartela... e parece que vejo a cena. Ela e uma amiga, ambas “mortas de vergonha”, de óculos escuros, na porta da farmácia, escolhendo qual a funcionária as iria atender. “Vixe, como era complicado naquele tempo!”, ela comentou. Não era mais necessário receita médica, mas parece que era preciso contar com a compreensão do balconista. Um acontecimento e tanto.

O rompimento do silêncio criado em torno do que se passava dentro do quarto do casal? Sim, acho que não exagero. A maioria das filhas não sabia como suas mães transavam, se elas já utilizavam a pílula, se continuavam na “tabelinha”, se adotavam o diafragma ou outro método. Quanto aos rapazes, a ignorância era maior – com a diferença de que alguns já tinham perdido a virgindade, mas geralmente com uma prostituta (num quarto de cabaré ou, numa alternativa mais barata, com uma prostituta de calçada, de pé).

A mãe de uma amiga (uma mãe extremamente católica) dissera a filha que na hora do sexo cumpria as suas obrigações “como uma tábua”, sem sentir prazer algum (como se isso fosse uma virtude) e a pobre da guria me contou isso estarrecida.

Ainda vigorava o padrão criado no século XIX no qual as moças deviam ser inocentes e puras, semelhante às heroínas dos romances de José de Alencar (que se lia muito, ao menos eu li, no tempo de Ginásio), enquanto os rapazes deviam se aventurar nos prostíbulos e deter algum conhecimento. Que tempos, vixe! De um lado uma literatura exageradamente romântica, propagandeando uma postura idealista em relação ao amor, de outro os “catecismos” do Carlos Zéfiro versando sobre o mesmo assunto numa abordagem sacana, reduzindo o sexo a uma “grossa putaria”.

As moças envoltas em ares de virgindade, ignorantes a respeito da vida sexual, e os rapazes colocados na posição daqueles que deveriam “saber tudo”, mas na verdade lidando com informações muito rasas. Pobres rapazes! Sabíamos muito pouco. Os maiores sortudos haviam tido alguma experiência com uma tia, prima ou amiga mais velha, mas isso às vezes não adiantava grande coisa.

Uma noite, num bar de posto de gasolina (nas imediações da Avenida Farrapos), ouvi o relato de uma noite de núpcias na qual o noivo rasgara o vestido da noiva e a possuíra “sem frescuras”. Aquilo era brutal, mas também fascinante. Coisa de macho. Do ponto de vista masculino, não era completamente condenável. Comentámos que aquele não era o modelo ideal de tratar uma noiva, mas certamente uma alternativa. “As mulheres são cheias de dengues e não dá pra afrouxar”, avisavam os mais velhos. Era preciso firmeza para cumprir o papel de homem na primeira noite de casamento.

Que tempos aqueles, vixe! Éramos os figurantes de uma geração que deixava de se relacionar regularmente com prostitutas, que começava a transar com as namoradas, no entanto esbanjávamos ignorância a respeito de como fazermos isso...

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Histórias íntimas

 

Não é pouca coisa o que a autora, Mary Del Priore, pretendeu nesse pequeno livro (238 p.) a respeito da sexualidade e erotismo na história do Brasil.[1] Dar conta desse mundo privado (talvez o mais privado de todos, aquilo que se passa na cama) não é tarefa fácil. Mas a autora dá conta do recado. Uma visão geral (dentro do possível, como ela afirma mais de uma vez) a respeito de como a população que habitou e ainda habita a Terra Brasilis viveu e vive a sua sexualidade, sensualidade, desejos. Com pouca higiene e escassa privacidade no período colonial; de forma muito regrada no período imperial e boa parte do republicano (especialmente dentro do casamento); mais leve e solta nas últimas décadas, depois da “revolução sexual” das décadas de 1960 e 70.

O livro foi publicado em 2011 e, na introdução, a autora afirma que a primeira década do século XXI é caracterizada por quebra de tabus e maior tolerância. Li esse livro logo que saiu e, relido agora, tenho a impressão de que Mary Del Priore, depois do avanço do conservadorismo/bolsonarismo, não diria a mesma coisa. Afinal, o que parecia consolidado – quanto à emancipação feminina, à diversidade sexual e às tentativas de reconstrução das identidades sexuais – desmoronou. O bolsonarismo jogou na cara de muitos de nós que o avanço/liberação dos costumes... era chocante e deplorável para grande parte da população. Ora liberar aborto, aceitar gays e transexuais, reconfigurar a família, estabelecer novos modelos identitários para homens e mulheres!

Feita essa observação, no entanto, um livro e tanto. Capaz de colocar de forma acessível ao leitor médio os padrões e as transformações desses mesmos modelos ao longo dos quinhentos anos de história brasileira. De um período fortemente marcado pela moral sexual proposta pela Igreja Católica (nos períodos colonial, imperial e boa parte do republicano) chegamos aos anos 1960 e 70 quando os padrões são questionados, alterados, mesmo por aquela população que se dizia católica.

No período colonial, as mulheres eram consideradas “veículos de perdição” e um português do século XVI (João de Barros) chegou a afirmar que a paixão por elas era capaz de abreviar a vida de um homem. O prazer sexual era negado às mulheres, cabendo a elas apenas copular com vista à reprodução. Quanto aos homens, que eles pagassem o “débito conjugal” às suas esposas, tivessem ereções firmes e ejaculassem adequadamente. Se não conseguissem, corriam o risco de serem levados a julgamento público e passarem pelo “exame de elasticidade” (do pênis).

No século XIX, os casamentos continuaram orientados por questões econômicas e políticas, com pouco espaço para as afinidades e afetos, e a vida sexual não era grande coisa. O ideal feminino era o do recato e pegava bem se as mulheres (mesmo as esposas) revelassem certa repugnância ao contato físico. Os homens eram orientados a serem breves na cópula, sem manobras voluptuosas, pois o que importava era a ejaculação, essencial para a reprodução. O prazer masculino ficava restrito aos bordéis ou às amantes, se eles conseguissem isso. Havia a sífilis e outras doenças venéreas, “mulheres limpas” eram caras e pouco acessíveis a maioria dos homens. No final do século surgiu a literatura erótica (no início do XX a maior difusão de fotos com a mesma temática) e foi um santo remédio para os muitos solitários (imigrantes solteiros, p.ex.) e mesmo homens casados.

No início do século XX, porém, ocorrem rachaduras nesse muro de repressões, afirma a autora. Um novo ideal feminino começa a ser construído nas décadas de 1910 e 20 (ao menos para as elites educadas dos grandes centros urbanos) e o corpo feminino passa a ser valorizado. Um corpo de mulher ágil, exposto à atividade física e com menos pudor passa a ser o objeto de desejo masculino (e isto talvez tenha sido bom para as mulheres, imagino eu). Alguns poucos casais (talvez muito poucos, acentua a autora) seguem um novo modelo de relação sexual (uma nova orientação médica, mais arejada) e passam a buscar o orgasmo juntos (ainda sob a condução dos maridos, pois, afinal, eram eles que “conheciam” o mundo do sexo e às mulheres cabia obedecê-los sem revelar conhecimento sobre o assunto). Mesmo entre esses casais “avançados” o clitóris ainda não era valorizado e o jogo sexual permanecia desvantajoso para as mulheres. Mesmo assim, eram transformações. O tradicional regramento sexual era questionado e pouco a pouco se construía um novo padrão. O sexo conjugal com prazer, ao menos, já era visto como positivo.

Após a Segunda Guerra (nos chamados “Anos dourados”), os maridos ainda detinham o poder sobre as mulheres, a responsabilidade do sustento das esposas e filhos, cabendo às mulheres a tarefa de criarem a harmonia e felicidade familiar. Papéis bem delimitados, rígidos, nos quais a homossexualidade não tinha vez (não apenas do ponto de vista moral, mas porque era considerada uma anomalia, uma doença).

A rachadura completa desses padrões vai se dar com a “revolução sexual” das décadas de 1960 e 70. A pílula anticoncepcional (uma invenção norte-americana de 1957) chega as farmácias brasileiras nos anos 60 e libera o sexo da sua função reprodutora. “Fazer amor” passa a ser uma coisa boa, sem implicar em gravidez, e, ao mesmo tempo, vai se difundindo a ideia de que as mulheres têm a mesma capacidade dos homens para gozar. Os meios de comunicação de massas difundem essas novidades (a pílula, o prazer feminino, a emancipação das mulheres, novos modelos de identidade tanto para mulheres quanto para homens) e as coisas vão mudando. Novos padrões e modelos sendo estabelecidos.

Para mim, é um fenômeno difícil de compreender, apesar de ter vivido essas transformações e ser beneficiado por elas. Nos anos 70, em plena adolescência, vi desaparecer o costume da iniciação sexual masculina se dar com prostitutas, tive o “privilégio” de transar com as namoradas e posso dizer que ingressei na vida sexual de um modo diferente das gerações anteriores. Uma iniciação e um modo de construir a intimidade que abrem espaço para o prazer, a realização pessoal, o aprendizado a respeito do mundo feminino, e a construção de relações sexuais menos assimétricas do que as vividas pelos meus pais e a avós.

Um livro (uma releitura) que me possibilitou enormes reflexões e acho que pode ser útil e agradável a muitos.



[1] DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. SP: Planeta, 2011. 238 p.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Paris: uma história

 

Paris é uma cidade grávida do seu passado, conclui Yves Combeau, o autor de um pequeno livro, “Paris: uma história” (L&PM, 2024, 190 p.), que li movido justamente por essa sensação a respeito da “Cidade Luz”. O autor entende Paris como o resultado de uma alquimia em que se misturam realidades, imagens e imaginação, e apresenta uma síntese histórica e urbanística desde as origens, com a chegada da tribo celta dos Parisii (no século III a.C.) até o início do século XXI, que permitem uma visão geral do seu passado e presente.

Estive nesta cidade durante uma semana, em 2019, e vivi justamente o que o autor indica: a cada passo, a cada local, o encontro com uma “cidade grávida” de passado e construções imaginárias. Quando desci do táxi, na frente do Louvre, não foi só o antigo palácio real que eu vi, mas um cenário que me remeteu aos filmes baseados n“Os Três Mosqueteiros” que assisti na infância... O antigo palácio real, o atual museu e uma construção imaginária decorrente do cinema e da literatura. Realidade e imaginação. Como separar uma coisa da outra?

O livro não respondeu a todos os questionamentos, mas ajudou muito. Paris foi celta nos seus primórdios (séc. III a.C.), romana a partir de Júlio César, cristã desde o século III (com martírios numa das colinas, hoje denominada Montmartre), ganhou muralhas, catedrais, palácios e universidade, abrigando uma população numerosa e inquieta, que se fez protagonista de movimentos políticos como os de 1792 (a Revolução Francesa), 1830 (a deposição de Carlos V), 1848 (um ensaio de revolta popular) e 1871 (a Comuna de Paris). Um polo de inovações políticas e artísticas, como aponta o autor ao enfocar a tradição revolucionária da cidade e as suas criações artísticas (como as obras românticas do século XIX – “O Corcunda de Notre Dame”, de Victor Hugo, e o alto-relevo, “A partida dos voluntários”, no Arco do Triunfo – que a maioria de nós consumiu, de um modo ou de outro).

O breve livro não decifra todas as interrogações que afloram a um viajante, mas (como indiquei acima) auxilia. Num entardecer, caminhando entre a Ópera Garnier e o rio Sena, atravessei uma praça, me deparei com uma enorme coluna que me remeteu a alguma coisa da Roma Antiga... e agora eu sei: era a Coluna Vendôme, construída no período napoleônico, seguindo o modelo da Coluna de Trajano (narrando episódios bélicos) e fundida com 1.200 canhões tomados dos russos e austríacos no campo de batalha.

Rue de la Paix. Ao fundo, a Coluna de Vendôme.

Referências militares, por sinal, é o que não faltam no universo parisiense. O Arco do Triunfo (na Avenida Champs-Elysées) e o Salão das Batalhas (no Palácio de Versalhes) que o digam. Em ambos a exaltação da guerra na formação da nação francesa, tudo de modo glorioso e eloquente. Realidade militar que o autor acentua ao historiar um roteiro interminável de conflitos armados que vêm desde a chegada dos romanos, passa pelo medievo (com muitas disputas pelo trono, mais a Guerra dos Cem Anos), as guerras religiosas no século XVI (o inacreditável Massacre de São Bartolomeu), o cerco prussiano de 1870, até a ocupação nazista.

Minha leitura a respeito de Paris não vai encerrar por aqui e tomo este pequeno livro como mais um incentivo, num jogo que começou há décadas, desde quando me aventurei nas águas de Maupassant, Mérimée, Balzac, Zola, e tantos outros. Pena não haver maior detalhamento da bibliografia final do livro, indicando o que se encontra nas editoras brasileiras a respeito do assunto.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Milionárias comunistas nas Galerias Lafayette

 

Dias atrás assisti a um documentário francês chamado “A reinvenção da China” (2023, 110 min.), que encontrei disponível no Canal Curta!, e recordei a conversa cumprida que se faz desde o final da década de 1970 a respeito das reformas que transformaram o socialismo chinês (propostas pelo grupo dirigente que sucedeu a Mao Tsé-Tung). Eu comecei a lecionar História nessa época (1978) e me esforcei para compreender as mudanças. O assunto fazia parte do programa de algumas disciplinas e era um desafio tremendo. Faltavam informações, bibliografia, e uma das melhores coisas que li e utilizei em sala de aula foi o livro “Henfil na China – antes da Coca-Cola” (Ed. Codecri, 1980), a descrição da viagem do cartunista Henfil pelo país comunista. Meu repertório de professor de escola era certamente muito restrito.

A mudança da economia chinesa para o “socialismo de mercado” (o termo não é dos melhores, mas é o usual) foi acompanhada pelo ressurgimento de uma burguesia (essencial para o estabelecimento e crescimento de empresas privadas, consideradas imprescindíveis para o desenvolvimento nacional pelo Partido Comunista Chinês) e, desta maneira, apareceu um número considerável de novos ricos, muitos deles chegando à condição de milionários. Em 2021, o HSBC Consulting apontava um número de quase dois milhões de milionários chineses (com patrimônio líquido de até 1,5 milhão de dólares) e previa a duplicação desse número até 2025. Algo inimaginável na cabeça do professor de 1º e 2º graus que eu fui ao longo dos anos 80.

Em 2019, quando estive em Paris, visitei as Galerias Lafayette, vi umas mulheres orientais com malas de rodinha desfilando e me disseram: “São milionárias chinesas fazendo compras. Elas adquirem tanta coisa que é mais cômodo andar com uma mala do que carregar uma infinidade de sacolas.” Vi uma oriental acomodando uma mala num degrau de uma escada rolante (ela no degrau logo atrás), observei outra candidamente parada ao lado da sua mala numa pequena fila, na frente de um departamento de grife de luxo... e cheguei a imaginar que seria um bom exemplo para utilizar na sala de aula. “Olhem o que proporcionou o socialismo chinês”, eu poderia dizer. Isto se eu ainda tivesse sala de aula, pois estou aposentado desde 2016.

Nas Galerias Lafayette eu era um mero turista, acompanhando um grupo de professoras e alunas dos cursos de Design e História (da UFN, de Santa Maria) numa excursão cultural voltada para a arte e a moda. O grupo se propunha percorrer uma fatia elegante do mundo parisiense e faziam parte do roteiro o Museu Yves Saint Laurent, a Fundação Louis Vuitton, o Louvre, o Museu d’Orsay e o Palácio de Versalhes. As Galerias me foram apresentadas como um point importante do universo da moda, cenário de lançamentos de tendências que se difundem pelo planeta todo.

Visitantes apreciando o espaço criado pela a cúpula em estilo Art Nouveau
no principal edifício das Galerias Lafayette.

Uma professora me mostrou o valor de algumas peças de vestuário que estavam à venda – “As mais baratas”, ela disse – e eu vi que aquele era um mundo inacessível para os reles mortais. Como a maioria dos visitantes, fiquei restringido a apreciar a cúpula em estilo Art Nouveau que está no edifício principal das Galerias e também a vista deslumbrante da cidade que o terraço do prédio oferece: a Ópera Garnier logo em frente, a Torre Eiffel mais adiante, a igreja de Montmartre lá longe.

Paris vista do terraço das Galerias Lafayete: a Ópera Garnier à esquerda,
a Torre Eiffel à direita, lá longe.

Dias depois voltei para almoçar num dos pequenos restaurantes que se encontram nos corredores das Galerias e, sentado diante de uma mesa (tendo uma deliciosa e diminuta refeição na frente), ouvi a professora de História que eu acompanhava dizer que nunca vira tanta gente com roupas de grife por metro quadrado. Avistamos mais algumas orientais (nenhuma delas com malas de rodinhas, apenas sacolas) e foram essas figuras que lembrei assistindo ao documentário.

Provavelmente eram aquelas milionárias comunistas as que mais se divertiam naquele “shopping”. Elas se abasteciam de produtos das marcas Chanel, Dior e Louis Vuitton, graças a política traçada pelo Partido Comunista Chinês e, apesar de extremamente discretas e nada sorridentes, me pareciam que riam desbragadamente. Afinal, não fosse a reinvenção chinesa do velho comunismo soviético (aquele que a revolução liderada por Mao Tsé-Tung implementara), elas não estariam ali. Quem sabe até nem fossem genuinamente comunistas (muitos milionários chineses têm fugido do país nos últimos anos), mas foi o PCC que possibilitou o seu enriquecimento. Uma aula que o professor de História que eu fui teria muita dificuldade em ministrar.

domingo, 29 de setembro de 2024

Assalto ao quartel do 7º RI

 

Lembranças são assim: chegam de supetão. Comigo isso acontece frequentemente. E nem sempre são memórias ruins, pelo contrário. É um prazer ser tomado por elas.

Pois ontem de manhã eu estava caminhando por Santa Maria (me despedindo da cidade), passo pela frente do antigo quartel do 7º RI e recordo uma madrugada do início da década de 1990, quando meu amigo Luís Eugênio e eu fomos lá, paramos na frente do prédio, e rememoramos uma história que gostávamos muito.

Quartel do antigo 7º RI, atualmente do Comando da 6ª Brigada de Infantaria Blindada.
Foto do blog de José Antônio Brenner.

Eu morava em Santa Maria há pouco tempo (viera para esta cidade para lecionar na UFSM) e um colega nosso da Universidade nos dissera ter vivido um episódio fantástico (surreal, aos meus ouvidos) a respeito de um assalto àquele quartel, para salvamento de presos políticos, no final dos anos 60. Era uma história que ouvi o professor contar uma única vez, depois de ter bebido umas e outras. Um relato à boca pequena, com muitas lacunas, que resumo em dois parágrafos:

Ele pertencera a uma organização política que fazia oposição ao Regime Militar e alguns companheiros haviam sido presos. Entre esses militantes, uma moça muito bonita... Aqueles que não haviam caído se reuniram para deliberar a respeito do que fariam em relação às prisões e ele propôs a invasão do quartel. A turma recuou e ele, corajosamente, decidiu encarar a empreitada sozinho.

O restante da história é o professor, então um jovem estudante, com um lenço vermelho no pescoço, uma Smith & Wesson de cabo de madrepérola numa mão, uma granada na outra, tomando o quartel de assalto, durante uma madrugada. Ele imobiliza o guarda do portão principal, este o leva até a cadeia, os presos são libertados e ele os conduz pelo meio do campo, de Jeep, até a fronteira com o Uruguai.

Na oportunidade em que ouvi a história, o professor não admitiu contestação. Quando Luís Eugênio questionou – “Mas como, sozinho, invadir um quartel?!” –, ele se fechou e não tocou mais no assunto.

Luís Eugênio e eu, no entanto, nunca mais esquecemos e rememoramos o “causo” diversas vezes. Certa noite, depois de um jantar e muita conversa, resolvemos ir para frente do quartel para observar “in loco” se era possível ou não aquela história toda. Eugênio tinha um Opala e estacionou o carro na frente do 7º RI. Descemos e ficamos relembrando cada detalhe do mirabolante episódio: a Smith & Wesson, a granada, o susto do soldado que fazia a guarda no portão do quartel, a libertação dos presos e a viagem de Jeep pelo meio do campo, durante uma madrugada escura, em direção ao Uruguai...

– Uma história gaudéria – resumia Luís Eugênio, lembrando o detalhe do lenço vermelho, maragato, que o então jovem estudante colocara no pescoço para realizar a sua operação de salvamento.

Eugênio e eu nunca encontramos indício algum de que ocorrera um assalto ao quartel para o salvamento de presos políticos ou por outro motivo.

 

Obs.: o quartel do 7º RI foi inaugurado em 1913 e, segundo a descrição do memorialista José Antônio Brenner, suas “platibandas têm ameias imitando os parapeitos de fortaleza e nos cunhais há miniaturas de torreões ameados”. Uma construção impactante. Em 1987, o quartel passou a abrigar o Comando da 6ª Brigada de Infantaria Blindada, mas até hoje a população da cidade o designa como “Quartel do Sétimo”.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Pilcha farroupilha

      Dois colegas de escritório, um homem e uma mulher, estão na cozinha da empresa sentados em torno de uma mesa, bebendo café, cada um com o seu celular diante dos olhos. A mulher espirra e diz:
     – Foi desse homem que eu apanhei. 
     – Apanhou muito? 
     – Apanhei essa gripe. Tive um pouco de febre, mas já passou. Só ficaram esses espirros. 
     – Me mostra ele – o colega pede. – É teu namorado? 
    – Mais ou menos – ela diz, virando o celular para o amigo, apresentando a foto de um homem de cabelos brancos e um pequena barriga se destacando por cima do cinto das calças. 
    – Vocês estão se dando bem? 
    – Acho que sim – ela repete. 
    – Mas dias atrás ele quis me levar numa festa gauchesca, me mostrou a pilcha dele e eu não me controlei. Disse que achava aquilo muito atrasado, muito sem graça, sei lá. 
    – E o homem emputeceu, foi isso? 
    – Não, mas se ofendeu. Cheguei a dizer que esse negócio de pilcha farroupilha era horrível. Nem devia ter falado desse jeito, mas escapou. Perdi o controle. 
    – Pois é, quem é chegado no tradicionalismo e se pilcha na Semana Farroupilha se ofende quando alguém critica essa coisa toda. 
    – Isso aí. Ele se ofendeu e até disse que eu não amo o Rio Grande. 
    – E que isso de olhar torto para as comemorações da Revolução Farroupilha é coisa dos comunistas que estão infestando as universidades e fazendo guerra cultural, confere? 
    – Isto mesmo. Como é que tu sabes? 
    – Pela “lata” de tiozão dele. Tem todo o jeito de um sujeito conservador. Ele acampou na frente dos quartéis pedindo intervenção militar? 
    A mulher se levanta, vai ao balcão se servir de mais café, volta para a mesa e diz: 
    – É um homem das antigas, conservador. Mas vamos pular essa parte da política – ela acentuou. – A gente não fala muito nisso. O que importa é que estou gostando de lidar com um homem desse tipo. Com outra pegada, sabe? Eu estava me controlando, mas aí ele me mostrou a tal da pilcha, disse que queria me ver vestida naquele estilo... e eu estrilei. 
   – Vocês discutiram? 
   – Não, não chegamos a esse ponto. Mas nós alteramos. Pela primeira vez eu disse que não sou uma mulher convencional, que se vestir de prenda não faz o meu estilo, o meu jeito de ser, e ele se assustou. 
   – E a festa gauchesca que ele queria te levar? 
   – Eu desconversei naquela noite. Aí veio a gripe e eu aproveitei para dizer que ia ficar em casa, na cama, vendo Netflix. 
   – A gripe que tu apanhaste dele? 
   – Hahã. 
   – Gripe oportuna, hein? 
   – Isso mesmo. Não nos vemos desde que começaram as festanças da Semana Farroupilha e nesse tempo só trocamos mensagens. 
   – O tiozão entendeu o teu estilo, o teu jeito, então? 
   – Não sei. Me mandou uma foto dele todo pilchado, dizendo que ama o Rio Grande e as suas tradições. 
   – E tu? 
   – Eu respondi que eu também. Mas que estava gripada, com febre, acamada, sem disposição para festas. Quase falei que o Rio Grande esperasse por mim, mas me controlei.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

A Imperatriz Leopoldina

 

Quem passeia por museus ou exposições de arte sabe: tem obras que puxam os olhos da gente. Pois a visita que fiz ao Museu do Ipiranga, dias atrás, não fugiu a essa regra. Entrei no Salão Nobre do museu, onde se encontra a grande tela de Pedro Américo, “Independência ou morte!”, e o que me chamou mais atenção foi um quadro da Imperatriz Leopoldina, rodeada pelas quatro filhas e com o futuro imperador D. Pedro II no colo.

Na frente da famosa tela da “Independência...” o meu olhar vagou pelas figuras solenes do então Príncipe Regente e sua comitiva, se fixou no tropeiro no canto à esquerda, que observa espantado para aquele bando de cavalarianos gritando entusiasmado, e na sequência pousou no quadro da Leopoldina.

"Retrato de D. Leopoldina de Habsburgo e seus filhos" (1921),
de Domenico Failutti.

Ela não era uma mulher bonita e o artista que a pintou não dourou a pílula. Se bem que deu um toque de vivacidade à imperatriz, tornando-a muito simpática. Um quadro que Afonso Taunay (o diretor do Museu na época do 1º Centenário da Independência) mandou pintar em 1921 para reconfigurar a sala. Um quadro colocado na parede à esquerda da famosa tela de Pedro Américo, enquanto na outra parede, à direita, encontra-se um quadro representando Maria Quitéria. As duas, uma rainha e uma mulher-soldado, dando o toque feminino ao processo de emancipação política festejado naquela sala.

Leopoldina era uma princesa do Império Austríaco (filha do imperador Francisco I) que veio para o Brasil em 1817 (com 20 anos) casar-se com o príncipe D. Pedro (naquela altura, o futuro rei de Portugal). A mulher viveu nove anos no Brasil, engravidou nove vezes, sofreu dois abortos e pariu sete filhos. Cinco sobreviveram. Era uma princesa educada para ser rainha e sabia muito bem o papel que devia exercer, isto é, “fazer filhos”.

Li o livro da historiadora Mary Del Priore, “Leopoldina & Maria da Glória: duas rainhas: vidas e dores”, e fiquei impactado com a trajetória da imperatriz.[1] Neste livro, a autora recria a voz da filha primogênita de Leopoldina, Dona Maria da Glória (1819-1854, rainha de Portugal a partir de 1834), e faz ela narrar a vida da mãe. Uma estratégia narrativa que funciona. Tanto permite uma compreensão da trajetória íntima de Leopoldina (suas aspirações, o casamento, as frustrações) quanto da sua ação política a favor da independência do Brasil e do estabelecimento da monarquia.

Segundo a narrativa ficcional empregada, Leopoldina se colocou na posição de ter “quantos filhos pudesse” com o marido imperador. Ao casar aspirava “amor, afeto e compreensão” e o prazer sensual não estava no seu horizonte. Entendia o casamento como um sacerdócio, um encontro mais de almas do que de corpos, salvo para procriar, e mesmo frustrada devido a rudeza e indiferença do marido, não deixou de cumprir o seu dever. Em 1826, aos 29 anos, morreu de tanto engravidar. Uma trajetória, ao que tudo indica, comum às mulheres de sua época.

Quanto ao comportamento político, Leopoldina compreendeu bem as relações entre Brasil e Portugal (a emancipação política da antiga colônia era inevitável), se colocou a favor da independência e, principalmente, defendeu a adoção do sistema monárquico. Neste último aspecto, visando garantir a continuidade da sua família no poder. Pautava-se pelo ideário tradicional (o absolutismo monárquico, no qual fora criada) e seu envolvimento com o ideário liberal era apenas de fachada.

No Salão Nobre do Museu do Ipiranga, foi a Imperatriz Leopoldina que ganhou a minha atenção, deixando o ilustre marido em segundo plano (apesar de ele ser a figura central da narrativa visual apresentada como indiquei na crônica anterior). Certamente foi o livro da Mary Del Priore (que começara a ler dias antes) que ascendeu o meu interesse pela personagem. No livro, Leopoldina é descrita como uma mulher que sofria “ingratidões e desgostos” e se resignava ao seu papel de rainha: engravidar e parir sem pestanejar e fazer política quando isso fosse possível.



[1] DEL PRIORE, Mary. Leopoldina & Maria da Glória: duas rainhas: vidas e dores. RJ: José Olympio, 2024. 112 p.