segunda-feira, 7 de abril de 2025

Adolescência

 

Assisti a minissérie “Adolescência” e fiquei impressionado com o personagem principal: o menino de 13 anos de idade que esfaqueia a coleguinha de escola. A princípio entendi que o motivo do assassinato era o fato da menina ter esnobado e humilhado o rapazinho de cabeça quente, mas logo descobri que o buraco era mais embaixo. O crime não decorreu apenas da fúria do gurizinho rejeitado, mas foi alimentada por uma subcultura extremamente machista e antifeminista de ampla circulação nas redes sociais. Uma subcultura que, mais do que a família e a escola, é o que faz a cabeça de muitos adolescentes contemporaneamente. A minissérie é ambientada no Reino Unido, mas tudo indica que pode ser ampliada para o mundo ocidental em geral (o mundo formatado pelo universo da Internet).

Eu não fazia ideia da abrangência desses “discursos de ódio” em relação às mulheres divulgado por influencers do tipo de Andrew Tate, citado na minissérie e que eu nem sabia da existência. Sou um velho de 69 anos sem muito treino nas redes sociais. Utilizo o Facebook, me atrapalho com o Instagram e não participo de fóruns de debates on-line ou coisas do gênero (apesar de manter um blog de crônicas).

Dessa maneira, como sujeito despreparado no universo alucinante da Internet, foi fundamental para eu entender a minissérie a cena apresentada no segundo episódio, no qual o policial que investiga o crime recebe uma verdadeira aula do seu filho a respeito do que rola no Instagram e faz a cabeça da meninada da escola. Isto é, o filho do policial (que estuda na mesma escola do menino assassino) explica ao pai o que é a cultura machista e antifeminista que circula fora do radar dos pais e professores. Apresenta (didaticamente) o caldo cultural que serve para o menino e seus amigos articularem as suas dificuldades de identidade e comportamento sexuais. A gurizada acredita numa bizarra crença na qual as mulheres só se interessam por 20% dos homens, deixando os outros 80% chupando o dedo, e reage violentamente em relação a isso. Uns rapazes que sentem a sua masculinidade colocada à prova e entendem que precisam enfrentar essas mulheres que os desprezam, puni-las inclusive. Mostrar valentia. Usar armas para assustar. Faca, como a que é utilizada pelo assassino, que, segundo relato do amigo que empresta a arma, seria utilizado para ameaçar e não para matar.

Cena de "Adolescência": o inspetor policial recebendo uma aula do seu filho
a respeito do que rola nas redes sociais.

Mundo cão. Os rapazes em formação, preocupados com a sua macheza (“Sou atraente ou não para as mulheres?”), alimentados pela tal teoria dos 80/20, se sentem acuados e metem os pés pelas mãos. É o que acontece com o gurizinho de 13 anos. Seu sentimento de desvalia diante da menina que o faz de “corinho” (na linguagem dos anos 60 e 70; bullying na expressão atual) se articula com a cultura machista e antifeminista e dá no que dá: uma reação violenta que resulta em assassinato. O antifeminismo legitima a raiva que ele sente e o guri nem percebe que se torna um criminoso. Só cai a ficha após meses de cadeia e a proximidade do julgamento. Demora para o menino se perceber um assassino.

Penso que nenhum espectador sai o mesmo depois de assistir à minissérie. A emancipação feminina abalou as estruturas da sociedade tradicional, está reorganizando os papéis de gênero, mas muitos de nós não imaginavam que tantos homens fossem reagir a isso de modo tão violento. É esse caldo cultural (a revolução feminista, seus desdobramentos) que abala o personagem central da minissérie, um frágil e furioso adolescente acossado pelas transformações comportamentais. Fúria e fragilidade que encontra nos “discursos de ódio” um modo de se expressar. (O terceiro episódio, o da sessão do jovem assassino com a psicóloga, evidencia a fúria do frágil adolescente. Sua pergunta final, se ela gosta ou não dele, escancara a sua carência. Uma verdadeira cena de horror psicológico.)

A minissérie só não precisava pegar tão pesado com os pais, como ocorre no último episódio. Os velhos não merecem mais essa lambada. Já nos sentimos responsáveis demais pelas angústias e descaminhos da juventude.

sábado, 5 de abril de 2025

Novela juvenil

             Quando estava na terceira série ginasial, botei na cabeça que iria ser escritor. O professor de Língua Portuguesa sugeriu a prática do diário como exercício da escrita e segui o conselho. Décadas depois, peguei o material e o utilizei como matéria-prima para uma novela juvenil, que intitulei “Jorge encontra Lilian”.

Jorge, o narrador adolescente, se interessa por uma guria chamada Lilian e vive o despertar em relação ao sexo oposto. Não rola muita coisa entre os dois, eles dançam, mal se tocam, mas acontece de tudo dentro do rapaz e ele registra essa transformação no seu diário. Um texto intimista.

No final dos anos 90 eu publicara dois paradidático pela Editora FTD (“O mundo grego”, 1996, e “Quando os holandeses invadiram o Brasil”, 1998) e aproveitei para apresentar a minha ficção. A responsável pela literatura juvenil me chamou, disse que o texto era bom, mas não vendia. O mercado editorial mudara e o leitor juvenil queria temas mais fortes, como violência urbana, consumo de drogas, gravidez indesejada, Aids e assim por diante. Lembro que voltei de São Paulo (de ônibus) lendo livros juvenis com esse tipo de pegada.

Apresentei o texto para o Walmor Santos, meu antigo colega de oficina literária na PUC/RS, e ele também não topou. Walmor vinha fazendo sucesso com a sua editora, a WS, vendendo bem literatura juvenil nas escolas do Rio Grande do Sul, e sabia das coisas. Tivemos uma conversa telefônica memorável e ele me disse que faltava tempero. O personagem precisava beijar a menina, talvez transar, ao menos tentar, e fez um monte de sugestões para apimentar o texto. Mas não acatei. Eu queria a minha novela daquele jeito antigo, intimista, e parti para a edição independente.

Organizei o livro com ajuda dos amigos e mandei imprimir mil exemplares na Gráfica Pallotti, em Santa Maria. Fui à luta. Tive o apoio de professores de Ensino Fundamental em relação à novela (em especial do Colégio Nossa Senhora de Fátima, em Santa Maria) e consegui vender por volta de 800 exemplares. O restante distribuí gratuitamente. Hoje só tenho dois exemplares. Um sucesso, considerando o fato de ser um livro independente.

"Jorge encontra Lilian", edição independente, 1998.
Capa: Renato Valderramas.

Não era o meu batismo de fogo, mas a impressão que ficou é a de ter sido a minha maior peleia literária. Como o livro era adotado nas turmas de sétima e oitava séries, muitas vezes fui às escolas conversar com os alunos. Uma leitora reclamou que “não rolava nem um beijinho entre os personagens” e eu achei essa a melhor síntese da novela. “Sim”, eu disse, “o encontro se dá sem que ocorra muito contato físico.”

Eu tinha treze/catorze anos quando escrevi aquele diário que serviu de base para a novela e não sabia o que era beijar. Ao reescrever, nos anos 1990, me deparei com a paixão platônico que vivera (conheci a menina numa quermesse de colégio, nunca falei com ela) e fiz o personagem ir além, isto é, conversar e dançar com a guria. Depois ligar para ela e convidá-la a um cinema. Ter a ousadia que não tive. E terminei por aí a minha ficção. Um livrinho muito bem-comportado. Uma novela juvenil onde não rola um beijinho.

domingo, 23 de março de 2025

Pescar na beira do Canal São Gonçalo

 

No início da década de 1960, como a maioria da gurizada que morava na Zona do Porto, em Pelotas, pesquei nas margens do Canal São Gonçalo (que a gente chamava de rio, mas que nunca passou de um canal natural de ligação entre as lagoas dos Patos e Mirim). Um canal que diziam ser de pouca fundura e de correntezas fortes.

A pouca fundura explicava a impossibilidade de grandes navios chegarem ao porto. As correntezas, a necessidade dos pescadores utilizarem chumbadas pesadas para as águas não levarem suas linhas.

Relembro essas informações e escuto os mais velhos falando: as águas do canal, a importância disso para a história da cidade (desde o tempo das charqueadas), a construção do porto, as pescarias e as travessias a nado de um lado a outro do rio.

Meu pai, quando jovem, era desses que atravessavam o canal. Um feito grandioso que eu, menino, achava o máximo e nem imaginava imitar. Nós frequentávamos o Clube de Regatas que havia nas margens do canal, e o assistia mergulhar da plataforma de trampolim. Ele andava por volta dos 40 anos e ainda era capaz dessas áfricas.

Também o admirava preparando a linha de pesca para jogá-la no canal. O exame atento em relação ao peso das chumbadas, a colocação das iscas e depois a ginástica de rodopiar a linha com a mão direita, ao lado do corpo, dar força a ela e lançá-la ao fundo das águas. Uma ginástica olímpica, aos olhos do menino que eu era. Artes de um atleta grego em algum campo de provas da Grécia Antiga.

Lembranças das minhas perplexidades de menino na beira do Canal São Gonçalo. Coisas de guri e de sua relação com o rio e o pai. As águas caudalosas e piscosas do rio, a grandeza e os feitos heroicos do pai (não deixo por menos).

No final da década de 1970 ele veio a se suicidar e hoje, quase cinquenta anos depois, ainda sou capaz de reviver a mesma surpresa e dor que sua morte causou. Como um corpo com tamanha vitalidade no trampolim do Clube de Regatas e nas pescarias na beira do rio pode colocar um fim na sua vida de modo tão abrupto e descabido?!

Como a maioria dos guris que moravam na Zona do Porto, em Pelotas, pesquei nas margens do Canal São Gonçalo. Gurizada de infância simples, filho de um bancário e uma professora primária, com dois irmãos (um mais velho, outro menor), porém com um tesouro guardado na memória: meu pai girando a linha com a mão direita e depois a lançando no ar. Graças a chumbada, ela voava, caia no rio e, logo depois, era capaz de ter um dos seus anzóis mordido por um bagre.

Local das pescarias de infância. Foto de 2023.


quinta-feira, 20 de março de 2025

Voltar a morar em Porto Alegre

 

Voltei a morar em Porto Alegre, depois de 33 anos em Santa Maria, e preciso dizer isso a mim mesmo.

Nasci em Pelotas, morei onze anos naquela cidade, e vim com a família para a Capital, em 1967. Um exemplo da migração das populações das cidades do interior para as grandes capitais que ocorria no país inteiro. A busca por alternativas de ascensão econômico-social que o interior não tinha condições de oferecer.

No caso de meu pai, pesava a sua situação de bancário, categoria que estava com os salários arrochados e da qual ele se desiludira. Recordo que ele era vinculado a uma iniciativa cooperativista no banco em que era empregado e essa ação dera com os burros n’água.

A mãe era professora do Magistério Estadual e permaneceria como tal. Ela resistia a mudança, mas entendia que Porto Alegre era melhor para o marido e os filhos (neste último caso, um tratamento mais adequado para o filho mais velho, diagnosticado com reumatismo juvenil).

A família não se deu mal. Creio que os novos ares foram bons para todos.

Cursei o primeiro ano do Ginásio no Colégio Rosário e pegava o bonde todos os dias. Uma novidade completa para mim. O Túnel da Conceição não existia (as obras iniciariam em 1970), mas os moradores antigos já falavam que a cidade estava deixando de ser uma província. Havia um clima de modernidade que se refletia nos costumes (“Novos valores, novos comportamentos”, dizia a prima Carmen Lúcia) e logo os bondes seriam tirados de circulação.

Enquanto isso, na política, os militares dominavam e conduziam o país para uma ditadura, o que ocorreu de fato em dezembro do ano seguinte, com a promulgação do AI-5. Eu não sabia o que era autoritarismo, mas começava a entender o que era repressão. Certo dia, andando pelo centro da cidade, assisti de longe a polícia lançar bombas de gás lacrimogênio numa passeata de estudantes e descobri que protestar era perigoso. Logo me avisaram para manter distância em relação aos “subversivos” e segui o conselho.

Completei o Ginásio no Colégio São Pedro, no qual não se falava em Grêmio Estudantil, apenas em Grêmio Literário, do qual eu participava com entusiasmo, apresentando, entre outros, o famoso poema de Machado de Assis a respeito da sua visita ao túmulo da esposa: “Trago-te flores, restos arrancados / Da terra que nos viu passar unidos”.

Depois fui fazer o Curso Clássico no Colégio Júlio de Castilhos e lá, sim, descobri que existia política estudantil, porém isso estava proibido aos estudantes. O Grêmio Estudantil da escola fora fechado e vivíamos “tempos bicudos”, diziam os estudantes bem-informados.

Na mesma época (1971) ingressei no movimento de juventude da Igreja São Pedro (no bairro Floresta, onde morava) e ali iniciou o meu letramento político. O nosso padre-orientador comentava as resoluções do Congresso Episcopal de Medellin (aquele que estabelecera a opção preferencial pelos pobres), nos orientava para um Cristianismo com compromisso social, e aquilo me desvendou um novo mundo. Sim, política era possível. Necessária inclusive.[1]


Rua de Porto Alegre - Bairro Boa Vista.

Rememoro isso sem saber onde vai dar. Depois de três décadas regresso a Porto Alegre como professor universitário aposentado e certamente cumpro outro roteiro, diferente daquele que seguiu meu pai. Não busco novas alternativas econômicas. Minha carreira profissional está encerrada. Busco alternativas prazerosas numa cidade grande e me preparo para envelhecer.

As lembranças da Porto Alegre do final dos anos 60 me vêm quando subo no ônibus (como estão diferentes, alguns até com ar-condicionado) e sinto que elas marcam um início de uma nova etapa que ainda não sei como nomear. Mas vou recordando e registrando.



[1] O movimento de juventude que existia na Igreja São Pedro se chamava Movimento Estudantil Floresta (MEF). Fora fundado por remanescentes de organizações católicas (JEC e JUC especialmente) desmanteladas pelo Regime Militar. Tinha uma orientação progressista, mas a política não era o seu eixo. Esse era apenas um dos assuntos. Valia mesmo eram os Evangelhos, lidos por uma chave “libertadora”.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Filmaço!

            Dias atrás, fui ao Shopping Bourbon Country assistir ao filme iraniano “A semente do fruto sagrado” e, na saída, fiquei comparando com o brasileiro “Ainda estou aqui”.[1]

Duas formas bem distintas de realizar cinema de cunho político. Tudo muito explícito no caso iraniano (centrado na família de um juiz que assina sentenças de morte aos presos políticos durante uma conjuntura de manifestações contra a teocracia dos aiatolás); tudo muito sutil no caso brasileiro (abordando a família de Rubens Paiva, o ex-deputado preso ilegalmente, torturado e desaparecido pelos órgãos de segurança do Regime Militar).

Cartaz do filme Ainda estou aqui.

“Ainda estou aqui” é uma narrativa muito original – e magnífica – a respeito do modo como uma determinada família (em especial a esposa) encarou as arbitrariedades e violências do Regime Militar, principalmente quanto às técnicas utilizadas pelos militares para enfrentar os seus adversários políticos. No filme, a violência cometida pelos agentes de segurança não é explicitada. Na cena em que os agentes da Aeronáutica vão a casa do ex-deputado e o levam para interrogatório, nenhum deles porta metralhadoras (conforme está registrado pela documentação a respeito). O modo de representar o episódio (a cenografia da prisão) retirou as armas pesadas das mãos dos agentes e deixou apenas um revólver na mão de um deles, que logo é escondido embaixo da camisa.[2]

Esse modo de construir o aprisionamento/sequestro (uma prisão ilegal, pois os agentes não portavam ordem de prisão) me pareceu emblemático do tom da narrativa fílmica (muito distinta da maioria dos filmes que abordam o Regime Militar). A direção do filme “limpou” a cena do aprisionamento e esse modo de representação me pareceu emblemático da narrativa. A violência não se explicita, mas está colocada inteira no drama. Ao final do filme, o espectador está exausto com a crueldade dos agentes militares (e abismado com a beleza da narrativa).

Pelos milhões de brasileiros que têm ido ao cinema e aplaudido, quero crer que a estratégia narrativa é eficaz. O pessoal sai comovido da sala. “Ditadura nunca mais”, grita um e outro espectador, ao final.

O filme iraniano, por sua vez, para alcançar o mesmo objetivo (a denúncia da violência política) opta por explicitar os policiais sentando o pau nos manifestantes e, desta maneira, criar o clima de tormento que atinge o juiz, sua esposa e as duas filhas. A cena em que uma manifestante ferida no rosto é atendida (cena longa, com close no rosto para melhor visualização dos movimentos lentos da pinça retirando as bolinhas de metal cravadas na pele) é exemplar.

Foi isso que pensei batendo pernas pela rua, entre o shopping e o meu prédio. Filmaço, este que Walter Salles realizou e Fernanda Torres e Salton Melo representaram com brilhantismo. Mas destaque especial para a cena muda da personagem Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Montenegro, no final: a viúva de Rubens Paiva na cadeira de rodas, doente, na frente da TV, assistindo a um documentário sobre o Regime Militar, e subitamente despertando para as atrocidades dos militares. Cena antológica a respeito do horror – o horror! – que os regimes autoritários são capazes de produzir.



[1] A semente do fruto sagrado, direção e roteiro de Mohammad Rasoulof. Irã / Fr. / Alemanha, 2024, 167 min.; Ainda estou aqui, direção de Walter Salles, roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega. Br. / Fr., 2024, 135 min.

[2] No filme, não fica claro que os agentes do aprisionamento de Rubens Paiva são da Aeronáutica, apenas que são agentes da repressão. Na sequência, não há cena da tortura, morte e desaparecimento do cadáver do ex-deputado. Conforme relatório da Comissão Nacional da Verdade, em 2014, Rubens Paiva foi levado para a III Zona Aérea, no aeroporto Santos Dumont, Rio de Janeiro, e ali começou a tortura, com o propósito de descobrir informações sobre Carlos Lamarca. Depois ele foi transferido para o DOI-Codi do I Exército, onde foi morto. Posteriormente os militares jogaram o seu cadáver no mar.

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Os desígnios de Deus

 

Minha mãe costumava marcar missas no aniversário de morte do pai. Às vezes na Igreja São Pedro, no Bairro Floresta, outras vezes na Igreja Santa Teresinha do Menino Jesus, no Bom Fim. Nunca soube as razões das escolhas. Na São Pedro, certamente porque foi a sua paróquia durante décadas; na Santa Teresinha, não sei. Mas ela me avisava o local e o horário e, se eu pudesse, estava lá. Quando passei a morar em Santa Maria, muitas vezes organizei viagens a Porto Alegre que coincidiam com a data da missa. Eu não mais me enquadrava na figura do católico praticante (desde os 18 ou 19 anos), mas ir à missa com ela era outra coisa.

Pois outro dia estava caminhando no Bom Fim, passei na frente da igreja Santa Teresinha, e lembrei dela. Era fim de tarde, as portas estavam abertas, rolava uma missa lá dentro e resolvi entrar. É uma igreja muito bonita, em estilo neogótico (construção dos anos 1920), e caminhei até os primeiros bancos para observar o conjunto escultórico que existe na parede dos fundos do altar: Santa Teresinha ajoelhada aos pés de Nossa Senhora do Carmo, essa última com o Menino Jesus nos braços.`

Sta. Teresinha do Menino Jesus diante de N. Sra. do Carmo.

Lembrei que conversava com a mãe a respeito dessas figuras (as esculturas da igreja são impactantes), pois mesmo não sendo mais religioso o universo do Catolicismo me interessava. A Ordem dos Carmelitas atende a igreja e, justo nesse dia, a liturgia era voltada a Nossa Senhora do Carmo, padroeira da congregação. A Senhora do Escapulário, como também é conhecida, promotora desse costume de trazer este pequeno amuleto junto ao peito, simbolizando a proteção da Mãe de Deus. Costume que segui na infância.

Pois peguei o folder com a liturgia da missa e fiquei lendo as orações a Nossa Senhora do Carmo. Muito bonitas e até comoventes, na medida em que lia e lembrava da minha mãe. Mas era a parte final da missa, o padre propôs uma benção aos fiéis e eu resolvi ir embora. Aquilo não era para mim e me pareceu um abuso eu receber uma benção. Gosto de igrejas, gosto especialmente de arte sacra, o ambiente religioso ainda é carregado de significados, mas fico por aqui. Meu gosto e interesse é apenas estético e cultural, sem relação com a fé e as crenças católicas. Então saí da igreja e fui caminhar pela Avenida Osvaldo Aranha, pegar meu ônibus e voltar para casa.

Santa Teresinha do Menino Jesus viveu na França, no século XIX, e morreu de tuberculose, aos 24 anos. Uma das figuras da Igreja a respeito da qual tenho curiosidade. Poucos anos atrás comprei o seu livro “A história de uma alma”, publicado logo depois de sua morte, mas não avancei na leitura. Ela sacrificou a vida em nome de Deus e às vezes eu conversava com a mãe a respeito dessas trajetórias extremadas dos santos... sempre um modelo para a maioria dos católicos.

Minha mãe pensava a respeito dos desígnios de Deus, a vontade do Pai, e “dizer sim à vontade de Deus” estava entre as suas preocupações. “Ver nos acontecimentos a mão providente do Pai”, conforme está escrito numa das orações a N. Sra. do Carmo. Mas dentro de uma clave normal, sem os exageros da santidade, claro. Acho que até no suicídio do marido ela procurava ver a mão de Deus, os seus desígnios misteriosos. Eu não dizia nada quanto a isso. Quando a conversa enveredava para a morte do seu marido (meu pai), eu me limitava a recordar (e muitas vezes esmiuçar) os episódios reais, concretos, em torno do suicídio (a depressão psicológica que ele viveu, a falência do Montepio da Família Militar, empresa da qual ele era empregado e que, por razões desconhecidas, atormentou o seu final de vida) e, aí sim, me esforçava para decifrar o que que sabia. A vontade de Deus, essa eu ignorava e continuo ignorando.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Verde esmeralda

 

A história é mais ou menos a seguinte: a mulher está se separando, está com a papelada do divórcio encaminhada, só falta assinar, e súbito ela acha que poderia ter feito mais alguma coisa pelo marido.

A vida do esposo degringolou desde que ele largou o que vinha fazendo ao longo dos anos e resolveu ter a própria empresa. Tinha esse sonho. Tentou vários negócios, em todos se deu mal. Gastou o que tinha e o que não tinha, se endividou e se sentiu arrasado. Injustiçado. Perseguido por um "sistema injusto em relação àqueles que ambicionam sair da mesmice”. Na sequência, encrencou a sua vida pessoal. Arranjou amantes esporádicas (“Para reerguer a autoestima”, justificava para si mesmo), até que passou a chegar tarde em casa, fazer viagens inesperadas e a esposa achou que passara da conta. Ela se pôs a campo, descobriu que ele estava envolvido com uma mulher mais nova e o colocou contra a parede:

– E agora, tu tá querendo o quê? Qual é o sonho, a ambição, o projeto? Onde eu entro nessa história?

O marido enrolou, disse que estava numa fase difícil, e só mais tarde admitiu que estava querendo “um tempo sozinho”. Saiu de casa, levando o único carro da família e demorou quase dois anos para acertar a separação, a pensão para a filha e coisas do gênero. Agora que está tudo encaminhado, a esposa pergunta para a terapeuta:

– Será que eu não poderia ter feito mais por ele? Compreender e apoiar os seus sonhos, a sua luta?

A psicóloga não responde. Devolve a pergunta:

– E não fez?

– Será que eu fiz tudo?

– Acho que tu deste o melhor.

 A mulher ficou calada. Sua vida passou como um filme na sua frente e ela teve certeza de que fizera o possível. Ou o que sabia, o que estava ao seu alcance. Procurou com os olhos alguma coisa no consultório onde fixar a sua atenção e encontrou um relógio dentro de um círculo de porcelana azul marcando 15h20min. “Tenho mais 30 minutos de sessão ou 40?”, pensou. Não sabia. Estava com quase 50 anos e sem a mínima ideia de quanto anos mais pela frente.

– Sim, acho que fiz... Na verdade, dei o melhor de mim – ela disse, e apontou o relógio.

– Quanto tempo eu tenho? – perguntou.

A psicóloga disse que ela não se preocupasse com o tempo da sessão, se preocupasse com a sua vida, o seu tempo, e ela riu.

– Sim, é nisso que estou pensando. – E passou a mão pela frente do rosto como se afastasse uma mosca e falou de um vestido verde que vira na vitrine de uma loja do térreo do prédio do consultório. – Um verde muito bonito, que combinam com uns brincos de esmeraldas que comprei anos atrás, na Colômbia. Vou comprar e usar no dia em que for assinar a papelada do divórcio - garantiu, sorrindo.