terça-feira, 13 de maio de 2025

Sonhar com Paris

 

João Alberto completou 70 anos e pertence a uma geração que estudou francês no Ginásio e no Curso Clássico. Cedo ganhou familiaridade com o imaginário francês e passou a admirar seus artistas. Leu Baudelaire, Flaubert e Maupassant (em tradução), assistiu aos filmes de Godard e Truffaut, e sonhou em ser poeta. Até fez alguns poemas e ganhou concurso literário quando estudante. Mas um primo escritor lhe avisou que a coisa não era fácil e ele guardou a literatura para os finais de semana e, por fim, a esqueceu.

Dedicou-se a advocacia, abriu escritório e ganhou dinheiro, o suficiente para possuir um apartamento na cidade, uma casa na praia, trocar de carro regularmente e até financiar o da esposa. Deu vida boa para os três filhos e eles puderam cursar a universidade sem trabalhar e só sair de casa só quando tiveram renda para bancar a própria sobrevivência. Com o seu talento para as letras jamais conseguiria coisa igual.

Mas aos 70 anos se deu conta que um velho sonho não desaparecera: conhecer Paris. Navegar pelo Sena como os personagens de Maupassant, cruzar na rua por mulheres fascinantes como nos poemas de Baudelaire, amar num quartinho minúsculo como num filme de Godard. Viajara pouco, sendo Buenos Aires e Cancún os seus únicos destinos no exterior, esse último devido à insistência da esposa, que dissera que “todo mundo conhece, é maravilhoso”.

Naquela viagem a Cancún, aos 60 anos, se deu conta que perdera a paixão pela vida e entrara em outra etapa da existência. Gostava de trabalhar, isso sim, e eventualmente lia algum romance. Naquela temporada mexicana, fizera um sexo protocolar com a esposa e depois a assistira caminhar pelo quarto, abrir as cortinas para o mar do Caribe e a ouvir falar de outras viagens que precisavam realizar.

– A Europa, João Alberto, aquele tour que sonhamos tantas vezes: Lisboa, Madri, Paris.

– Não, eu não sirvo para isso – ele disse, sentando-se na cama, servindo-se de uma garrafa de vinho branco mergulhada num balde de gelo. – Vai com as amigas, tu vais te divertir mais. Eu virei um chato.

– Um acomodado, isso sim. Um velho, muito antes da hora. Tu podias reagir.

Ele riu e não falaram mais no assunto. Ela viajou para a França, Itália e Egito, sempre com as amigas, enviando cartões postais no princípio (como ele pedira) e depois apenas fotos pelo WhatsApp.

Agora, com 70 anos nas costas, João Alberto retoma um velho sonho de estudante, mas não quer a companhia da esposa. “Uma viagem romântica”, ele imagina, com uma companhia que lhe acenda antigos ardores. Pensou encontrar isso em Rosângela, uma cliente de 47 anos, que ele atendeu num caso de separação litigiosa, e tem conversado com ela a respeito. Uma noite eles beberam espumante no apartamento dela, fizeram amor e ele recitou Baudelaire. O francês saiu estropiado, mas lembrou-se da tradução e ela o abraçou com um carinho inédito para ele.

“Minha doce irmã, / Pensa na manhã / Em que iremos, numa viagem / Amar a valer, / Amar e morrer. / No país que é a tua imagem! / (...) / Lá, tudo é paz e rigor, / Luxo, beleza e langor.”[1]

Assistindo a um filme na Netflix descobriu que há congressos acadêmicos na área do Direito, na Universidade de Sorbonne, e inventou que é este o seu próximo passo: a inscrição num evento universitário, o pretexto para a almejada viagem. Falou com um dos sócios do escritório e ele, que é professor universitário, ficou de lhe acertar os detalhes.

– Claro que não iremos juntos – ele avisou Rosangela. – Eu irei primeiro e te esperarei no Charles De Gaulle. Reservarei um quarto num hotel de Montemartre, um passeio no Bateaux Mouches, um jantar na Torre Eiffel e as obrigatórias visitas ao Louvre e ao D’Orsay.

Rosangela riu e não soube se devia acreditar ou não. “É um farsante tirando onda comigo”, ela pensou, “mas vou embarcar na fantasia. Por que não?” Sentiu que aqueles planos o entusiasmavam, o tornavam mais ardente na cama e era disso que precisava. Rosangela explicou que não estudara francês na escola – “Uma disciplina que a reforma educacional suprimiu” –, que sempre preferiu o universo da língua inglesa, conheceu Nova Iorque, Miami, mas apreciava a cultura europeia.

– Tudo que tu falas é novidade para mim. Estou aprendendo contigo.

João Alfredo se alvoroçava se imaginando em Paris e lembrava o adolescente que fora frequentando a biblioteca da escola para ler a respeito da cultura francesa. Sentia voltar a antiga admiração pelos assuntos tradicionais do universo francês – o escândalo provocado por “Flores do Mal”, o processo judicial causado por “Madame Bovary”, a revolução desencadeada pelos impressionistas – e achava graça que isso ainda fazia sentido para ele... Sentia também a força do sexo lhe vir renovada (turbinada, é claro, por um comprimido azul) e racionalmente decidiu manter a fantasia da viagem até quando pudesse suportar. Talvez fosse o último delírio da sua vida e não se impediria de sonhar. Cultivaria com zelo e carinho esse projeto de viagem com a amante, cuidando para não abalar seu casamento, a vida que construíra com empenho e sacrifício. Nem a esposa gostaria disso e lhe agradeceria muito se a mantivesse ignorante em relação ao assunto.



[1] “O convite à viagem”, tradução de Ivan Junqueira.

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