quinta-feira, 3 de julho de 2025

Galeria dos Lanceiros

 

Quem foi a Florença certamente andou pela Piazza della Signoria, bateu os olhos nas esculturas da Loggia dei Lanzi (Galeria dos Lanceiros) e talvez tenha se espantado com a violência das esculturas. São impactantes, belas e inesquecíveis.

Galeria dos Lanceiros. Ao fundo, "Perseu", de Cellini.

Perseu com a cabeça decapitada da Medusa, Hércules sentando o porrete no centauro Nessus (que antes tentara seduzir a sua esposa Dejanira), Pirro sequestrando Polixena, com o irmão dela morto aos seus pés, enquanto Hécuba (a mãe da jovem) se arrasta agarrada às pernas do guerreiro aqueu, mais o fabuloso conjunto escultórico do rapto de uma sabina. Um romano agarra e ergue no ar uma jovem sabina (para depois levá-la para sua cama, na sua humilde choupana, como eram as habitações dos primitivos habitantes de Roma), enquanto um musculoso sabino se prosta, vencido, aos seus pés.

"Rapto da Sabina", de Giombologna. 

Violência pra mais de metro, se poderia dizer. Heróis da mitologia greco-romano se movimentando sem freios e cumprindo trajetórias de crueldade, representados por brilhantes artistas: Benvenuto Cellini, em “Perseu” (1554), Pio Fedi, em “Rapto de Polixena” (1865), Giambologna, em “Hércules em luta com o centauro Nessus” (1599) e “Rapto da Sabina” (1583).

"Hércules em luta com o centauro Nessus", de Giombologna
e Pietro Francavilla.

Em “Hércules em luta com o centauro”, Giambologna teve a colaboração de Pietro Francavilla, uma informação geralmente esquecida nos livros de história da arte, mas não no quadro/legenda da galeria, indicando títulos, datas e autorias das esculturas.

Pois eu visitei Florença num dia frio e ensolarado de fevereiro de 2017, entrei nessa galeria, ergui os olhos justo para o “Rapto da sabina” e levei um susto. A beleza da escultura (os corpos nus em movimento, em luta, em completa tensão) me fisgou e demorei a entender o que estava vendo. Várias lembranças, como um thriller de filme, passaram pela minha cabeça. Muito além de apreciar uma obra-prima da arte ocidental eu estava contemplando a representação de uma lenda da fundação da Roma antiga... dessas que os guris da minha geração, criados na sala escura dos cinemas, tomaram conhecimento na infância.

“Rapto das sabinas” (1961) foi um desses filmes do cinema italiano (pródigo, naquela época, em enfocar temas do Mundo Antigo) que passava nas matinês do Cine Guarany, em Pelotas, e que eu assistia com a maior seriedade. Eu ia a essas sessões de cinema com meu pai e o cravava de perguntas na saída. Queria saber detalhes da trama, dos personagens, do registro histórico, e o pai se esmerava em responder. Quando chegávamos em casa, ele ia na estante consultar alguma enciclopédia, abria o volume na minha frente, lia trechos, me mostrava gravuras e minha imaginação alucinava. Um mundo inteiro se desenhava aos meus olhos, indicando o início de uma viagem que venho realizando até hoje.

No caso do rapto das sabinas, o impacto foi tremendo. Um episódio brutal, dado como verdadeiro pelo historiador Tito Lívio (e assim entendido pelo menino que eu era), mas inegavelmente uma lenda. Roma vivia os seus primórdios, era governada por Rômulo, o primeiro dos seus reis, e faltavam mulheres para aquele bando de homens selvagens que queriam formar um reino. Precisavam de mulheres que servissem de esposas, mães, e que garantissem a consolidação e crescimento do povoado. A solução foi realizar uma festa, convidar as famílias das aldeias próximas (habitadas pelos Sabinos) e, a um sinal determinado de Rômulo, capturar as mulheres e expulsar os seus pais, maridos e irmãos. Um rapto, uma violência. A formação de uma grande cidade (de um dos esteios da nossa civilização) a partir do aprisionamento de várias mulheres que, ao final (ao menos na lenda, na conversa de Tito Lívio) aceitaram a sua nova condição e passaram a conviver pacificamente com os novos maridos.

Na Galeria dos Lanceiros, em Florença, esse filme me passou pela cabeça. Me tocou o conjunto das violências representadas – cabeças decepadas, centauros massacrados, mulheres raptadas, violentadas – e fiquei fascinado. Embasbacado com o modo maravilhoso, artístico, como todo esse universo de fúrias & paixões ganhou vida naquele espaço. Por séculos e séculos, gerações de homens e mulheres se escandalizaram e se deliciaram com aquelas representações e eu era mais um nessa multidão, vivendo o espetáculo dos horrores dos primórdios da nossa civilização...

"Rapto de Polixena", de Pio Fedi.

Afinal, monstros precisaram ser vencidos, sacrifícios tiveram de ser realizados (Prolixena foi morta para que os navios aqueus tivessem bons ventos no regresso à Grécia) e mulheres sabinas urgiam ser raptadas de seus pais ou maridos para que Roma se erguesse. Ou, pelo menos, assim foi escrita e desenhada a História no nosso imaginário.