quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Paris: uma história

 

Paris é uma cidade grávida do seu passado, conclui Yves Combeau, o autor de um pequeno livro, “Paris: uma história” (L&PM, 2024, 190 p.), que li movido justamente por essa sensação a respeito da “Cidade Luz”. O autor entende que Paris é o resultado de uma alquimia em que se misturam realidades, imagens e imaginação, e apresenta uma síntese histórica e urbanística desde as origens, com a chegada da tribo celta dos Parisii (no século III a.C.) até o início do século XXI, que permitem uma visão geral do seu passado e presente.

Estive nesta cidade durante uma semana, em 2019, e vivi justamente o que o autor indica: a cada passo, a cada local, o encontro com uma “cidade grávida” de passado e construções imaginárias. Quando desci do táxi, na frente do Louvre, não foi só o antigo palácio real que eu vi, mas um cenário que me remeteu aos filmes baseados n“Os Três Mosqueteiros” que assisti na infância... O antigo palácio real, o atual museu e uma construção imaginária decorrente do cinema e da literatura. Realidade e imaginação. Como separar uma coisa da outra?

O livro não respondeu a todos os questionamentos, mas ajudou muito. Paris foi celta nos seus primórdios (séc. III a.C.), romana a partir de Júlio César, cristã desde o século III (com martírios numa das colinas, hoje denominada Montmartre), ganhou muralhas, catedrais, palácios e universidade, abrigando uma população numerosa e inquieta, que se fez protagonista de movimentos políticos como os de 1792 (a Revolução Francesa), 1830 (a deposição de Carlos V), 1848 (um ensaio de revolta popular) e 1871 (a Comuna de Paris). Um polo de inovações políticas e artísticas, como aponta o autor ao enfocar a tradição revolucionária da cidade e as suas criações artísticas (como as obras românticas do século XIX – “O Corcunda de Notre Dame”, de Victor Hugo, e o alto-relevo, “A partida dos voluntários”, no Arco do Triunfo – que a maioria de nós consumiu, de um modo ou de outro).

O breve livro não decifra todas as interrogações que afloram a um viajante, mas (como indiquei acima) auxilia. Num entardecer, caminhando entre a Ópera Garnier e o rio Sena, atravessei uma praça, me deparei com uma enorme coluna que me remeteu a alguma coisa da Roma Antiga... e agora eu sei: era a Coluna Vendôme, construída no período napoleônico, seguindo o modelo da Coluna de Trajano (narrando episódios bélicos) e fundida com 1.200 canhões tomados dos russos e austríacos no campo de batalha.

Rue de la Paix. Ao fundo, a Coluna de Vendôme.

Referências militares, por sinal, é o que não faltam no universo parisiense. O Arco do Triunfo e o Salão das Batalhas (este, no Palácio de Versalhes) que o digam. Em ambos, a exaltação da guerra na formação da nação francesa, tudo de modo glorioso e eloquente. Realidade militar que o autor acentua ao historiar um roteiro interminável de conflitos armados que vêm desde a chegada dos romanos, passa pelo medievo (com muitas disputas pelo trono, mais a Guerra dos Cem Anos), as guerras religiosas no século XVI (o inacreditável Massacre de São Bartolomeu), o cerco prussiano de 1870, até a ocupação nazista.

Minha leitura a respeito de Paris não vai encerrar por aqui e tomo este pequeno livro como mais um incentivo, num jogo que começou há décadas, desde quando me aventurei nas águas de Maupassant, Mérimée, Balzac, Zola, e tantos outros. Pena não haver maior detalhamento da bibliografia final do livro, indicando o que se encontra nas editoras brasileiras a respeito do assunto.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Milionárias comunistas nas Galerias Lafayette

 

Dias atrás assisti a um documentário francês chamado “A reinvenção da China” (2023, 110 min.), que encontrei disponível no Canal Curta!, e recordei a conversa cumprida que se faz desde o final da década de 1970 a respeito das reformas que transformaram o socialismo chinês (propostas pelo grupo dirigente que sucede a Mao Tsé-Tung). Eu comecei a lecionar História nesta época (1978) e me esforcei para compreender essas mudanças. Fazia parte do programa de algumas disciplinas abordar o assunto e isto era um desafio tremendo. Faltava informação, faltava bibliografia, e uma das melhores coisas que li e utilizei em sala de aula foi o livro “Henfil na China – antes da Coca-Cola” (Ed. Codecri, 1980), a descrição da viagem do cartunista Henfil pelo país comunista. Meu repertório de professor de escola era certamente muito restrito.

A mudança da economia chinesa para o “socialismo de mercado” (o termo não é dos melhores, mas é o usual) foi acompanhada pelo ressurgimento de uma burguesia (essencial para o estabelecimento e crescimento de empresas privadas, consideradas imprescindíveis para o desenvolvimento nacional pelo Partido Comunista Chinês) e, desta maneira, apareceu um número considerável de novos ricos, muitos deles chegando à condição de milionários. Em 2021, o HSBC Consulting apontava um número de quase dois milhões de milionários chineses (com patrimônio líquido de até 1,5 milhão de dólares) e previa a duplicação desse número até 2025. Algo inimaginável na cabeça do professor de 1º e 2º graus que eu fui ao longo dos anos 80.

Em 2019, quando estive em Paris, visitei as Galerias Lafayette, vi umas mulheres orientais com malas de rodinha desfilando e me disseram: “São milionárias chinesas fazendo compras. Elas adquirem tanta coisa que é mais cômodo andar com uma mala do que carregar uma infinidade de sacolas.” Vi uma oriental acomodando uma mala num degrau de uma escada rolante (ela no degrau logo atrás), observei outra candidamente parada ao lado da sua mala numa pequena fila, na frente de um departamento de grife de luxo... e cheguei a imaginar que seria um bom exemplo para utilizar na sala de aula. “Olhem o que proporcionou o socialismo chinês”, eu poderia dizer. Isto se eu ainda tivesse sala de aula, pois estou aposentado desde 2016.

Nas Galerias Lafayette eu era um mero turista, acompanhando um grupo de professoras e alunas dos cursos de Design e História (da UFN, de Santa Maria) numa excursão cultural voltada para a arte e a moda. O grupo se propunha percorrer uma fatia elegante do mundo parisiense e faziam parte do roteiro o Museu Yves Saint Laurent, a Fundação Louis Vuitton, o Louvre, o Museu d’Orsay e o Palácio de Versalhes. As Galerias me foram apresentadas como um point importante do universo da moda, cenário de lançamentos de tendências que se difundem pelo planeta todo.

Visitantes apreciando o espaço criado pela a cúpula em estilo Art Nouveau
no principal edifício das Galerias Lafayette.

Uma professora me mostrou o valor de algumas peças de vestuário que estavam à venda – “As mais baratas”, ela disse – e eu vi que aquele era um mundo inacessível para os reles mortais. Como a maioria dos visitantes, fiquei restringido a apreciar a cúpula em estilo Art Nouveau que está no edifício principal das Galerias e também a vista deslumbrante da cidade que o terraço do prédio oferece: a Ópera Garnier logo em frente, a Torre Eiffel mais adiante, a igreja de Montmartre lá longe.

Paris vista do terraço das Galerias Lafayete: a Ópera Garnier à esquerda,
a Torre Eiffel à direita, lá longe.

Dias depois voltei para almoçar num dos pequenos restaurantes que se encontram nos corredores das Galerias e, sentado diante de uma mesa (tendo uma deliciosa e diminuta refeição na frente), ouvi a professora de História que eu acompanhava dizer que nunca vira tanta gente com roupas de grife por metro quadrado. Avistamos mais algumas orientais (nenhuma delas com malas de rodinhas, apenas sacolas) e foram essas figuras que lembrei assistindo ao documentário.

Provavelmente eram aquelas milionárias comunistas as que mais se divertiam naquele “shopping”. Elas se abasteciam de produtos das marcas Chanel, Dior e Louis Vuitton, graças a política traçada pelo Partido Comunista Chinês e, apesar de extremamente discretas e nada sorridentes, me pareciam que riam desbragadamente. Afinal, não fosse a reinvenção chinesa do velho comunismo soviético (aquele que a revolução liderada por Mao Tsé-Tung implementara), elas não estariam ali. Quem sabe até nem fossem genuinamente comunistas (muitos milionários chineses têm fugido do país nos últimos anos), mas foi o PCC que possibilitou o seu enriquecimento. Uma aula que o professor de História que eu teria muita dificuldade em ministrar.